Nem do lado direito, nem do lado do avesso: o artista e suas modalidades de experiência de si e do mundo


Nem do lado direito, nem do lado do avesso: o artista e suas modalidades de experiência de si e do mundo

Sylvie Fortin

Sylvie Fortin é professora do departamento de Dança da Universidade de Quebec, em Montreal, onde obteve o diploma de Estudos Superiores em Educação Somática. É autora de vários artigos científicos traduzidos em inglês, espanhol, italiano e português e foi coordenadora em 2008 do livro Dança e saúde: do corpo íntimo ao corpo social. 27

Fonte: http://www.ifdj.com.br/site/wp-content/uploads/2015/10/IV-Seminarios-de-Danca-O-Avesso-do-Avesso-do-Corpo.pdf

Resumo

De uma centena de entrevistas referentes às percepções sobre o corpo, a saúde e a estética na dança, emergiu o conceito de discurso artístico dominante, caracterizado pela precedência da obra e pela ultrapassagem dos limites do artista. Isso poderia constituir o lado direito do corpo.

A educação somática, visando ao desenvolvimento da capacidade de sentir o que escapa à consciência crítica, situa-se, pelo mesmo tanto, no lado avesso do corpo? O que seria o lado avesso do avesso do corpo? Talvez uma criação, interpretação e apreciação da dança para além da procura de um equilíbrio entre o discurso tradicional em dança e aquele mais marginal da educação somática? Como conceber o corpo dançante oscilando entre a nostalgia de um corpo natural e a decepção em relação a um corpo cultural? No contexto das práticas emergentes, de que meios dispõem os artistas para compartilhar novos modos de experiência de si e dos outros?

O título do seminário, “O lado avesso do avesso do corpo: educação somática como práxis”, conduz me inevitavelmente a me perguntar o que é o avesso do corpo, mas também o que é o lado direito do corpo. Na minha apresentação, compartilharei com vocês o que evocam para mim esses conceitos. Proporei a ideia de que a educação somática pode se enxertar tanto no lado direito do corpo quanto no lado avesso do corpo ou no avesso do avesso dele (ao menos o que eu compreendo por esses conceitos). Eu defenderei, sobretudo, que a educação somática, como práxis, ou seja, tal qual prática reflexiva e crítica, visa transcender tais conceitos, pois a acepção de “soma” exprime uma unicidade indivisível e integradora.

Nascida fora do campo da dança, desenvolveu-se a partir dos anos 1930 uma variedade de práticas de consciência do corpo em movimento1 , tais como o método Mosh Feldenkrais; a técnica Mathias Alexander; o body-mind centering, de Bonnie Bainbridge Cohen; a ginástica holística, de Lily Ehrenfried; o continuum, de Émilie Conrad; a eutonia, de Gerda Alexander; e mais perto do meio da dança, aqui no Brasil, o método de Klauss Vianna.

Na década de 1970 a educação somática penetrou o meio da dança a tal ponto que uma definição apareceu na segunda edição do Dicionário de dança Larousse (2007, p. 210): “Campo disciplinar que emerge de um conjunto de métodos que tem por objeto o aprendizado da consciência do corpo em movimento no espaço”. Vários programas universitários e instituições profissionais de dança incluem agora uma formação específica em educação somática, entre os quais estão a Universidade Paris 8, a Universidade de Quebec (Montreal), a Universidade de Central Lancashire, a Coventry University e a Universidade do Rio de Janeiro. Uma comunidade de pesquisadores formou-se assim, e em 2009 foi publicado o primeiro número da revista internacional Journal of Dance and Somatic Practices. Tudo isso denota um caminhar notável desde que o filósofo Thomas Hanna, em 1976, fundou mais formalmente o campo disciplinar, apoiando-se 1 (Para uma apresentação das práticas, ver Johnson (1995), mas para uma apresentação ligada à dança, ver Eddy (2009). 28) sobre o sentido original da palavra grega “soma”, isto é, “the living, self-sensing, internalized perception of oneself (is) radically different from the externalized perception of what we call ‘a body’ in an objectified form” (HANNA, 1988, p. 114). O soma, o corpo vivo no seu conjunto, não pode ser reduzido à soma de seus componentes corpóreos, cognitivos, sociais, emotivos ou espirituais, o que Maurice Merleau-Ponty tinha bem para consigo. Hanna retomou então ideias merleau-pontiescas e o termo grego “soma” para fazer delas o fundamento de uma abordagem do vivo explicitamente holística e portadora de uma reivindicação contra todos os pensamentos dualistas. O soma resiste mal às diferentes orientações do corpo, ao lado direito, ao lado avesso ou ao lado avesso do avesso, mas prestar-se ao exercício de pensar acerca do assunto permite perceber até que ponto é difícil compartilhar nossas experiências no que diz respeito a base da linguagem.

Gostaria de iniciar esta conferência de abertura convidando vocês a identificarem por algumas palavras o que evocam estes conceitos: O que é o lado direito do corpo? O que é o lado avesso do corpo? E, por fim, o que é o avesso do avesso do corpo?

Todas as nossas representações do corpo vêm dos discursos sociais dominantes ou alternativos (nós poderíamos dizer do direito ou do avesso) aos quais fomos expostos durante a vida. Os discursos sociais constituem um conjunto organizado de valores, conhecimentos e comportamentos que nos oferecem a perspectiva com base nas quais interpretamos os acontecimentos e as situações (e as questões ambíguas, tais como o que é o lado direito, o avesso e o avesso do avesso do corpo). Apropriamo-nos dos discursos sociais por uma série de modos: pelos valores transmitidos no seio de nossas famílias, de nossos referenciais de mídia, das fontes de informação de que dispomos e, no caso da dança, pelos ambientes artísticos que cruzamos ao longo do nosso caminhar.

A adesão, às vezes inconsciente, a certos discursos apenas consisti numa grade a mais de leitura e uma maneira de ser no mundo, pois os discursos se inscrevem nos indivíduos pelos diferentes usos do corpo. O lado direito do corpo Meus estudos referentes às representações do corpo em dança demonstram que os usos do corpo dos artistas da dança profissional tendem a reproduzir o discurso dominante da dança teatral ocidental, que promove um ideal de corpo em que prevalecem os critérios estéticos de beleza, esbeltez, virtuosidade, devoção e ascetismo, tendo como efeito uma aceitação silenciosa dos já considerados normais dor e ferimento (LAWS, 2004; SORIGNET, 2004; TURNER; WAINWRIGHT, 2003).

Mais precisamente baseando-me em quase uma centena de entrevistas com coreógrafos, intérpretes e dançarinos pré-profissionais de Montreal (FORTIN, 2008), eu associo o lado direito do corpo ao discurso artístico dominante. Nele predominam a precedência da obra artística e a ultrapassagem dos limites físicos e psicológicos do artista. A dança contemporânea é percebida pelos dançarinos como “uma prática de risco” 2 , e o ato de criar 2 Expressões utilizadas pelos artistas entrevistados. 29 representa uma “procura de inovação” que, apesar dos corpos treinados de forma sólida, estraga o corpo quase que de maneira inevitável.

A influência das práticas de circo contribuiu na renovação da estética da profissão, mas também encorajou tomadas de risco físico como nunca antes. Conciliar os “excessos” que podem comportar um procedimento de criação com a necessidade de ter um corpo funcional revela-se uma tarefa complexa. Numerosas estratégias de “preparação e reparação” do corpo são empreendidas, entre as quais a educação somática.

Com frequência as mulheres começam a dançar mais cedo que os homens e incorporaram profundamente uma cultura do silêncio, ou seja, elas calam suas feridas, já que as revelar poderia acarretar pesadas consequências num meio muito competitivo, onde as mulheres estão em número maior. Durante nossas entrevistas, alguns coreógrafos se mostraram preocupados com o bem-estar de seus dançarinos, como se vê nas declarações que seguem: “Eu coloco meus dançarinos constantemente em situação de desconforto. Onde está o limite entre fazer um esforço e ir longe demais? Entre se violentar e se machucar?”. Um modo de tornar mais leve o fardo corporal dos intérpretes é, para um, solicitar sua participação ativa na elaboração da obra: “Eu trabalho a partir do corpo dos dançarinos: a gestualidade não lhes é imposta de fora”. Já outra coreógrafa disse: “Eu lhes digo sempre para que escolham eles mesmos suas torturas”. Isso equivale a apoiar a saúde e o bem-estar dos dançarinos? Em certos casos, parece verossímil a coconstrução da gestualidade aparecer como uma possibilidade de cuidar do dançarino, porém com frequência existe uma defasagem entre as intenções igualitárias e as ações que deveriam delas decorrer. O trabalho que visa ao esgotamento e à vulnerabilidade do intérprete para enriquecer a obra com processos inconscientes, tornados assim mais disponíveis, foi também assinalado como problemática. Em geral, os coreógrafos estão mais em sincronia com a visão artística deles do que com as necessidades físicas dos dançarinos. Não há limites. Eu digo aos dançarinos que eu, como coreógrafo, tenho todos os direitos. Posso pedir a eles para pular pela janela do quarto andar e, se eles forem suficientemente loucos para fazê-lo, o problema é deles. Mas eu vou pedir. O limite [para o dançarino] será o de dizer: “Acho que, agora, está demais”. Aí, podemos começar a negociar. Mas, muitas vezes, eu vou dizer: “Faça-o assim mesmo”. E é frequentemente desta impossibilidade que vai surgir algo muito rico. Estamos diante de um problema insolúvel, e é sempre o intérprete que acha a solução… O papel primeiro deles é o de se oferecer e de oferecer tudo. E o meu papel é o de fazer também assim. Meu papel é de criar. Eu sou Deus quando eu realizo criações. Meu papel é criar um mundo à minha imagem. Simples assim3 .

3 As entrevistas podem ser encontradas nos artigos da autora: FORTIN, S. et al. Incorporation paradoxale des normes esthétiques et de santé chez les danseurs contemporains. In: ______ (Org.). Danse et santé: du corps intime au corps social. Quebec: Presses de l’Université du Québec, 2008. p. 9-41; FORTIN, S.; TRUDELLE, S.; MESSING, K. (2008). Entre corps de passion et corps de travail. In: FORTIN, S. (Org.), Danse et santé: du corps intime au corps social. Quebec: Presses de l’Université du Québec, 2008. p. 45-81; FORTIN, S.; VIEIRA, A.; TREMBLAY, M. Expériences corporelles des discours de la danse et de l’éducation somatique danse. In: FORTIN, S. (Org.). Danse et santé: du corps intime au corps social. Quebec: Presses de l’Université du Québec, 2008. p. 115-136. 30

Se, de maneira ideal, a satisfação da ultrapassagem se compartilha entre o coreógrafo e os dançarinos, permanece o fato de que as consequências físicas do risco são assumidas mais pelos intérpretes, enquanto o reconhecimento da originalidade da obra é atribuída ao coreógrafo. Longe de nós a intenção de polarizar os criadores e os intérpretes, afinal, ao fim de um longo e complexo processo de incorporação do discurso dominante da dança, todos interiorizaram modos de perceber, de pensar e de agir que convergem em direção a uma grande devoção à arte.

Nossos estudos relatam numerosos sacrifícios consentidos em nome da arte pelos artistas que os vivenciam numa relação com o corpo, que faz um amálgama entre alienação e júbilo. Eis, em algumas palavras, uma descrição do discurso dominante na dança, ao qual eu associo o conceito de corpo no lado direito.

O lado avesso do corpo

Eu posicionarei a educação somática como o avesso do corpo, pois ela defende valores em situação instável em relação ao discurso dominante em dança. Mas os métodos de educação somática situam-se de todo modo no avesso do corpo? A fim de me ajudar a atenuar minha resposta a essa pergunta, gostaria de voltar a um artigo que escrevi em 1996 traduzido para o português três anos mais tarde: Educação somática: novo ingrediente da formação prática em dança4 . Ali eu afirmava que a contribuição da educação somática para a dança era principalmente a de oferecer aos dançarinos, coreógrafos e professores ferramentas para: 1) melhorar a técnica, 2) desenvolver as capacidades expressivas e 3) prevenir e curar as feridas (FORTIN, 1999). Eu vou completar essas proposições com base em meu percurso pessoal, na esperança de que este último encontre um eco e alimente a discussão que prosseguirá nos próximos três dias.

A melhora da técnica

Eu me interessei primeiramente pela educação somática como professora de dança para crianças. Procurava meios que poderiam me ajudar a fazê-las progredir sem que perdessem, quando chega o tempo de introduzir o vocabulário técnico, a alegria do movimento que traz uma corporeidade não inibida. O objetivo de vários métodos de educação somática é encontrar, na falta de um modelo de corpo professoral a ser imitado, como é o caso de uma aula típica de dança, novas opções de movimentos baseadas nos seus próprios referenciais sensoriais.

A educação somática interessa-se pelo corpo por meio da experiência do “eu”. Ali é valorizada uma subjetividade que se educa e se refina de uma sessão a outra por estratégias pedagógicas precisas. Por enquanto, prefiro evidenciar de que modo os métodos de educação somática, como o body-mind centering ou o Feldenkrais, me deram, graças à sua abordagem evolucionista, referenciais em termos de conteúdo de ensino.

Tais metodologias apoiam a tese segundo a qual a ontogênese recapitula a filogênese, isto é, de que o desenvolvimento motor do ser humano está calcado nos estádios de evolução das espécies aquáticas (4 Minhas outras publicações em português, individuais, compreendem 1998, 1999, 2009a e 2009b. Já em parceria são Fortin e Long (2005), Fortin, Vidaria e Trembay (no prelo) e Weber e Fortin (2004). 31) e animais.

Concretamente, isso me guiou na priorização de certos aprendizados. Parecia-me inútil, por exemplo, corrigir a posição dos dedos de uma jovem dançarina, preferindo eu me deter no centro do corpo, pois o movimento se desenvolve do centro em direção à periferia, do alto para baixo, de uma lateralidade não diferenciada a uma contralateralidade. Esse exemplo serve para trazer a questão ainda muito atual das contribuições possíveis da educação somática na formação dos dançarinos.

Alguns adotam uma posição drástica, defendendo que não é necessário passar por uma técnica com um vocabulário de movimentos predeterminados para fazer nascer um artista do corpo que reflita a arte atual. Os próximos dias dar-nos-ão amplamente a ocasião de debater a questão: É possível, por intermédio de certas abordagens somáticas, fazer nascer outro tipo de corpo, outro tipo de artista? Deixando de lado as disciplinas habituais, nasceria um artista “indisciplinado”, um artista do avesso? Lanço esses questionamentos à reflexão dos próximos dias, sabendo muito bem que o mercado da arte, marcado pela globalização e pela cultura mainstream, não se preste talvez a corpos do lado avesso.

As companhias de dança que fazem turnês internacionais ou que são populares na sua cultura local estão à procura de corpos polivalentes, e em geral as instituições que formam os dançarinos utilizam a educação somática como um ingrediente na sua formação, ingrediente que é preciso utilizar com moderação. A inclusão da educação somática nos programas de formação em dança, aliás, levantou no início certas resistências. Um dos coreógrafos entrevistados no âmbito de minha procura sobre as representações do corpo disse: Em um certo momento eu tinha medo, pois via toda a atenção que se dava aos cursos de anatomia e de somática, e eu me dizia: “Dê mais cursos de técnica aos seus dançarinos (rindo)!” […] Porque se eles se formam nas escolas, depois eles sabem que tem dor em tal músculo ou que eles não devem mover tal outro músculo… Eu temia que nos depararíamos com dançarinos que estariam preocupados demais com este aspecto. Mais tarde, ao contrário, eu via os jovens dançarinos com quem eu trabalho neste momento e eu acho que eles trabalham tão bem. Eu teria gostado disto, trabalhar de mesmo modo [sic]. Eles escutam, eles são inteligentes, eles compreendem o que você quer, e eles procuram bastante nos seus corpos o caminho para te dar.

A pertinência de incluir a educação somática na formação artística é cada vez mais reconhecida, contudo sua presença no seio das instituições em dança parece-me sempre frágil, instável e ameaçada, porque ela não participa da mesma maneira da edificação do corpo glorioso, invencível e produtivo do discurso dominante. As práticas institucionalizadas do meio profissional e pré-profissional funcionam ainda frequentemente conforme uma pedagogia autoritária, que faz a promoção de corpos dóceis a serviço de uma imagem estética que não serve sempre para o bem-estar dos dançarinos. Apesar das intenções louváveis de todos e de cada um de fazer evoluir a profissão, as divergências manifestam-se quanto aos meios para ali chegar. Em uma perspectiva somática, para facilitar uma reorganização corpórea global, o dançarino adotará diferentes estratégias de aprendizado às vezes aparentemente contraditórias: o controle pelo abandono, o relaxamento para encontrar a força, a procura de amplitude por um trabalho aquém dos limites, a visualização a fim de melhorar a execução motora, a lentidão para melhor captar um allegro etc… 32

A educação somática marca de forma definitiva o desenvolvimento da dança contemporânea pela pedagogia que ela preconiza. No International handbook of research in arts education, publicado em 2007, Green pinta um quadro da procura pedagógica sobre o corpo em dança iniciado com uma seção intitulada “Somatic dance research”. A autora explica que o termo somática não é um rochedo. Várias orientações coexistem sob esse termo guarda-chuva. Alguns privilegiam um método específico, enquanto outros utilizarão mais largamente uma abordagem somática. Mesmo assim todos adotam uma pedagogia que repousa sobre o convite feito aos dançarinos de tomar decisões por meio de uma experiência sensível que reconhece a singularidade de seu corpo (GEBER; WILSON, 2010). É o que Green (2007) chama de autoridade somática ou autoridade interna5 .

A pedagogia da educação somática desafia, assim, o discurso dominante na dança, ancorado na autoridade exterior do professor, do coreógrafo ou do estilo de dança valorizado. Para Shusterman (2007), fundador da disciplina filosófica da somaestética, as práticas representacionais (como o corpo objeto se dá à vista) predominam nas sociedades ocidentais e deveriam ser mais bem equilibradas por práticas experienciais (como o corpo sujeito se presta ao sentido). Embora úteis sob vários aspectos, eu creio que as dicotomias entre corpo de representação/corpo de experiência, corpo dócil/corpo sensual, corpo objeto/corpo sujeito, corpo na terceira pessoa/corpo na primeira pessoa não nos forneçam talvez as melhores bases para pensar o desenvolvimento dos campos da dança e da educação somática.

No plano pedagógico, será verdadeiramente um desafio saber em que proporção e modalidade se deve equilibrar o discurso dominante com aquele da educação somática. O corpo no lado direito pelo corpo no lado avesso? Será que existe outro modo de pensar a formação do que por uma distribuição parcimoniosa do tempo de ensino entre as aulas de somática, anatomia, técnica contemporânea, balé, reforço muscular, improvisação etc.? Como pensar de outra maneira a formação em dança em 2010? Eu não tenho resposta a essa questão, entretanto observo certos programas que enfrentam o risco de procurar novos caminhos.

Estes últimos se diferenciam por uma excelente colaboração entre os inúmeros membros da instituição e a comunidade profissional de dançarinos e educadores somáticos. Eles tomam o desafio de um real desejo de compreensão do outro, e não de uma tolerância superficial do outro. Os artistas que saem dessas escolas podem ser criadores prolíficos, intérpretes performáticos, professores eficazes, mas, sobretudo, são pessoas aptas a entrar em relação com elas mesmas e com os outros, além de agir sobre seu meio. Elas são capazes de continuar seu desenvolvimento profissional de forma autônoma.

O desenvolvimento das capacidades expressivas

Enquanto a questão precedente marcou o período durante o qual eu me aprofundava no plano 5 Autores em dança tais como Green (2001) e Long (2002) parecem utilizar de modo intercambiável os termos autoridade interna e autoridade somática. Estes se referem à capacidade de tomar decisões baseadas no conhecimento de si e, mais especificamente, levando em conta experiências do corpo vivido. 33 da técnica de dança, a próxima questão surgiu, principalmente, de minhas atividades em criação e em acompanhamento de coreógrafos. A pergunta é saber como a somática pode desempenhar um papel no plano criativo. Para responder a esse questionamento, eu gostaria de voltar à ideia expressa no início desta apresentação de que o corpo, quer se trate de seu lado direito ou de seu lado avesso, é uma construção cultural resultante do aprendizado consciente ou inconsciente de valores e normas sociais.

O campo artístico não é diferente dos outros, como sublinhava Bourdieu (1992). O autor refutava a ideia de que a inspiração artística tem algo de divino, como acreditava o coreógrafo do qual foi questão anteriormente. Bourdieu ficava aborrecido com os criadores que mantêm, voluntariamente e com vantagem para si, mitos a respeito da fonte de sua inspiração. O sociólogo objetava-se a uma visão abstrata demais da arte e dos artistas e colocava, preferencialmente, na frente os processos de socialização que condicionam como percebemos, pensamos e agimos. Assim como sobre todo o mundo, desde a infância são exercidos sobre os artistas os efeitos estruturadores da sociedade. A estes se acrescem os hábitos perceptivos, conscientes ou inconscientes que, às vezes, podem esclerosar o trabalho do artista. A criação necessita de uma grande capacidade para deslocar sua atenção, a fim de notar novas opções, novas possibilidades, novos detalhes. Isso é um conceito-chave da educação somática, que eu ilustrarei por uma anedota.

Há alguns anos eu dava aulas a uma estudante que se recuperava de um ferimento nas costelas. Todas as perguntas que eu lhe fazia a respeito de sua experiência eram respondidas em termos de aumento ou diminuição de dor. Comecei a me impacientar com o seu hábito de limitar todas as suas experiências próprias a essa única parte de seu corpo. Pouco importavam as propostas coreográficas, a menina não podia ter acesso ao mundo sem esse filtro perceptivo. Outra aluna se lançava sempre com grande rapidez, intensidade e força na resolução de diferentes colocações de situações sem também modular sua experiência cinestésica. Acabei colocando em contato ambas as jovens, pois elas apreendiam seu corpo com uma só modalidade, limitando portanto seu imaginário. Sem diminuir suas particularidades estruturais ou expressivas, aos meus olhos, o desafio delas consistia em alargar seu campo perceptivo.

A educação somática é um verdadeiro laboratório de percepção (SUQUE, 2006). As tomadas de consciência desenvolvidas por uma variedade de colocações em situação, às vezes aparentemente sem importância, não resultam somente em uma reorganização dos músculos profundos e superficiais do corpo, mas num novo modo de estar presente no mundo e numa nova perspectiva acerca desse mundo.

Nas inúmeras oficinas das quais participamos nos primeiros três dias, estivemos talvez em contato com hábitos muito ancorados em nós e resistentes à mudança. Faz-se dispensável dizer: todo hábito perceptivo é também hábito motor. Os hábitos, quando protegem de esquemas familiares limitantes, tornam-se infelizmente armaduras que impedem novas experiências de vida. Na educação somática, uma vez que os hábitos sejam reconhecidos, eles serão explorados por múltiplas variações, e, aos poucos, se a pessoa se sentir em segurança para tal, novas percepções, novos comportamentos e novos pensamentos poderão ser integrados ao cotidiano do individuo, o que de maneira inevitável alimentará o trabalho de criação do artista. 34

Merce Cunningham dizia que, após uma dança, o mundo não é nunca mais o mesmo. Nós poderíamos também afirmar que, depois de um processo em educação somática, o mundo não é nunca mais o mesmo e, por isso, os educadores devem ficar extremamente vigilantes para dosar pouco a pouco as colocações em situação pedagógicas que fazem com que os participantes se reorganizem sob o plano perceptivo e motor. Não se deve subestimar o fato de que novas percepções de si são capazes de desestabilizar nossa identidade. Uma mudança em profundidade da imagem de si, ou seja, de todos os planos da pessoa, requer certa duração. É capital para os educadores somáticos dosar de forma prudente as experiências propostas a fim de não desestruturar a pessoa (a menos, é evidente, que tenha as competências e o contexto de acompanhamento para assumir a situação). As sugestões de mudança devem ser feitas com cuidado para evitar a perda rápida demais dos referenciais habituais.

Ainda aqui uma ilustração se impõe; uma de minhas estudantes doutorais acabara de terminar, como intérprete, o processo de criação de um solo. Durante três semanas de trabalho, a coreógrafa que a dirigiu só utilizou educação somática como estímulo à criação. Em seguida à primeira representação, a aluna não parava de me dizer estas palavras: “Eu não sei, de jeito nenhum, quem dançou esta noite”. Ela me assegurava que a experiência habitual dela mesma tinha sido tão abalada que ela não se reconhecia. Eu ouvi a expressão de sua confusão e de seu amargor diante de um processo criador que tinha abalado sua estrutura de identidade pela intensidade do processo de criação, baseado num número grande demais de variações de sua percepção dela mesma.

A seu ver, o trabalho somático deve ser feito antes do trabalho de criação ou então com moderação no período de criação, não desestabilizando demais o dançarino. Alguns poderão ver nisso um jogo ético. Outros talvez usarão a ocasião para pensar na questão subjacente colocada pela referida anedota: O que faz com que nós nos reconheçamos como nós mesmos? Como educador artístico e somático, de que modo respeitar as fronteiras das pessoas mas, ao mesmo tempo, provocar o inabitual no contexto da criação? A prevenção e a cura das feridas

A próxima pergunta que acompanhou meu percurso pessoal e que gostaria de propor para alimentar nossos intercâmbios é típica, mas não exclusiva ao corpo dançante que envelhece: Como a educação somática pode ajudar a curar as feridas ou a prolongar a duração de uma carreira? Durante entrevistas que minha equipe de pesquisa fez com os dançarinos, estes últimos (sobretudo os mais idosos) diziam que a educação somática era uma “alimentação para o corpo” e um momento de “recuperação essencial para o equilíbrio do corpo”. A educação somática parecia somar em tais profissionais funções tanto preparatórias como reparadoras, num sentido de bem-estar corporal. Entretanto faz-se preciso agora discriminar diferentes usos possíveis da educação somática.

Uma das minhas investigações, de maneira mais específica uma pesquisa-ação feita com estudantes pré-profissionais, demonstrou claramente que a educação somática podia ser utilizada de forma subversiva servindo o discurso dominante, com consequências algumas vezes para a saúde. Passarei mais tempo sobre essa pesquisa-ação a fim de mostrar como a educação somática pode preencher plenamente sua 35 dimensão de práxis, quando uma dimensão reflexiva e crítica acompanha o investimento corporal.

Imersos num programa de formação típica em dança, em sincronia com o discurso e seguindo paralelamente durante 15 semanas a experiência do discurso da educação somática, os participantes fizeram a experiência concreta de certas dissonâncias entre os dois discursos. O trabalho era motivado pelas nossas experiências passadas, que nos levaram a verificar como muitos alunos, embora expostos a cursos de educação somática que os permitissem viver sua autoridade interna, reintegram mais ou menos rápida e conscientemente o discurso do corpo ideal, do qual decorre muitas vezes uma aceitação silenciosa de situações que atingem o corpo.

De acordo com a socióloga Markula (2004), novas experiências corporais são necessárias, porém insuficientes, para a instalação de mudanças capazes de resistir às tendências dominantes. Para isso, a presença de um pensamento reflexivo é indispensável. Assim nós entendemos ser primordial que a pesquisa-ação compreenda, além das oficinas práticas de educação somática, uma reflexão teórica sobre a questão do corpo, da saúde e da estética em dança. Três perfis de estudantes sobressaíram nesse estudo em relação ao corpo ligado aos vários discursos. Os estudantes do primeiro perfil tomavam posse do discurso dominante em dança considerando que era um imperativo essencial para fazer a carreira. Como dizia um deles, para participar do jogo, é preciso aceitar suas regras: “Trata-se de viver o desconforto e de determinar as técnicas favoráveis à diminuição desta situação. Então é preciso entender que a dor e o desconforto são características próprias da profissão. Assim, é melhor domesticá-las”. Ainda quanto aos estudantes do primeiro perfil, as experiências corporais sugeridas nas oficinas práticas de educação somática eram desviadas de seus propósitos para, de preferência, ajudá-los a encaminhá-los para o que era relevante para eles: empurrar os limites de sua performance e preocupar-se, de certo modo, com as consequências. Essa procura pode causar grande satisfação, contudo também feridas e sofrimentos, pois as normas profissionais do corpo ideal e da performance infalível são dificilmente alcançáveis para a maioria dos estudantes. Não é então surpreendente que as tomadas de consciência suscitadas pela pesquisa-ação tenham provocado em determinadas alunas certo desconforto, como aparece no seguinte testemunho: Tratava-se para mim de talvez colocar de novo em jogo meu futuro de dançarina. Sei que não era o propósito, mas frequentemente para mim aconteceu e algumas vezes saí do curso completamente deprimida. Sou muito sensível a essas realidades que não quero enfrentar, porque queria continuar a pensar que tudo vai continuar indo muito bem para mim.

Os estudantes do segundo perfil manifestaram um pensamento reflexivo e crítico verbalizando uma reticência diante de alguns aspectos do discurso dominante. No entanto, de modo surpreendente, não pareciam realizar a experiência corpórea das mudanças de discurso que verbalizavam. As novas maneiras de ser e de fazer estavam compreendidas mentalmente, mas ainda não incorporadas: No texto de Feldenkrais, La conscience à travers le mouvement, fala-se de certos exercícios pedindo uma curvatura dos rins e uma distensão dos músculos abdominais […]. Esta intenção contradiz tanto o que se aprende desde o começo de nossa vida que teria dificuldade em executá-la frente aos meus 36 pares. Assim dar-me o direito de ter uma barriga mole e redonda poderia modificar a percepção de mim mesma e mesmo dos outros em relação a mim mesma. Somos tão condicionados a ter uma barriga achatada e dura que notamos imediatamente as barrigas gordas. Minha visão fica falseada quando chego ao metrô, de noite, e vejo a realidade. No comentário dessa aluna, podemos ver sua capacidade de fazer uma crítica do discurso dominante, embora ela não se sinta capaz de agir de modo diferente. As pessoas desse perfil mostravam poucas ações concretas perante situações que identificam como problemáticas. Os “eu devo” eram numerosos comparativamente aos “eu faço” ou “eu começo a”. É nos estudantes do terceiro perfil que se nota o uso da educação somática como práxis, pois demonstramos ao mesmo tempo um pensamento crítico ante ao discurso dominante e uma capacidade de se ligar a suas novas experiências corporais.

A educação somática favoreceu neles o desenvolvimento de uma autoridade interna respeitosa das estruturas do corpo, tornando-os menos vulneráveis aos impactos sobre a sua saúde acerca do discurso dominante na dança. Para ilustrar tal perfil, eis o testemunho de uma estudante após seu trabalho com um coreógrafo convidado a dar um curso de 15 semanas, tendo como objetivo a aquisição de competências de intérprete pela participação em um processo de criação, o que culminou na representação de uma obra original. Chegando à terceira parte do curso, o coreógrafo pediu aos alunos para perderem peso. Esse mesmo coreógrafo solicitou depois às estudantes para ensaiarem nos períodos normalmente livres das horas das refeições e fins de semana. Esse pedido, julgado excessivo, levou os membros do grupo a formar uma frente comum para delimitar a presença suplementar que podiam dedicar à preparação do espetáculo, levando em conta as diferentes situações familiares e as perdas financeiras ocasionadas pela diminuição do tempo disponível para o trabalho remunerado do fim de semana. A estudante declarou sentir-se dividida entre uma reação de resistência e uma de aceitação, afinal trabalhar com o referido coreógrafo, “ao mesmo tempo, me permite ter acesso a alguma coisa única na minha interpretação”. Demonstrando um pensamento reflexivo, ela põe em contexto as exigências do coreógrafo e usa a experiência para esclarecer suas escolhas de vida e reajustar seu posicionamento no interior do meio: Ele receia que sua peça não seja boa. Ele receia que falte tempo, mas isso não é meu problema, sua fama em Montreal. Mas, ao mesmo tempo, a gente trabalha junto, e vou fazer meu possível para que a peça seja boa […]. Isso clareou o que quero fazer na minha vida. Quero dançar, mas não quero só isso. Penso que não tenho a força. Queria fazer projetos com os principiantes, fazer dançateatro, ter filhos, fazer massoterapia, viajar. A dança fica num mundo de sacrifícios, mas acredito que as mudanças começam pelo nosso próprio mundo interior. Eu gosto da ideia de desenvolver uma autoridade interna.

Nessa dupla postura diante dos abusos do coreógrafo, a aluna demonstrou ser muito clarividente em relação às “regras do jogo” do discurso dominante. Na sua conversa aparece a ideia de que os estudantes cooperam por si próprios (pelo menos em parte) com as situações que atingem seu corpo, talvez por falta de opções possíveis ou ainda porque as vantagens que tiram valem os sofrimentos ou sacrifícios vividos em tais situações. 37 Para os estudantes do mencionado perfil, a normalidade da dor ou de certas práticas pedagógicas não é mais tão cegamente tolerada ou apenas sob certas condições e por certo tempo. Utiliza-se a dor como fonte de informação, e eles desejam uma carreira artística mais harmonizada com os outros campos da vida.

No conjunto, a combinação da reflexão crítica e das oficinas práticas de educação somática preencheu seu papel de questionar as regras do jogo, apresentando aos dançarinos uma pedagogia inabitual ao serviço de uma prática artística preocupada com os problemas de saúde. Ao reconhecer as possibilidades de prazer e de satisfação que podem decorrer das diferentes maneiras de praticar a dança, a nossa posição nessa pesquisa-ação era a da saúde tomada num sentido amplo, aproximando-a do preceito foucauldiano do cuidado de si (FOUCAULT, 1994).

Como passar de uma egossomática a uma ecossomática? Como caminhar e ajudar os outros a caminhar de uma egossomática a uma ecossomática, mesmo as classificações aqui sendo ainda muito arbitrárias e limitativas? Muitas vezes escutei a queixa de que a educação somática encorajava demais o individualismo e não tinha abertura para as preocupações sociais. Como Green (2001) e Eddy (2000), que falam de somática social, acredito que uma prática de consciência sobre si pode ajudar numa transformação da dinâmica relacional com o nosso entorno. O desenvolvimento da sensibilidade é visto então como um trampolim para alcançar o outro. De acordo com Shusterman (2007, p. 20), toda consciência somática e reflexiva aguda será sempre consciente de mais do que ela mesma. Focalizar-se sobre o fato de sentir seu corpo é pôr este último em primeiro plano sobre o fundo de seu meio ambiente, o qual deve ser, de certa maneira, sentido a fim de poder constituir um plano de fundo já provado. Entretanto a passagem de uma egossomática a uma ecossomática não se faz espontaneamente.

Os educadores

Os educadores somáticos devem encorajar a transferência das aprendizagens. Como exemplo, poderíamos pensar em perguntar a jovens artistas como eles sentem sua respiração ou tonicidade muscular quando tomam conhecimento de acontecimentos ruins, tal qual o recente vazamento de petróleo no golfo do Novo México. Para o educador somático, convém despertar nos jovens artistas tanto o saber-sentir como o saberagir. O convite para transferir, na vida cotidiana ou na criação artística, as experiências vividas nas sessões de educação somática faz-se normalmente por verbalizações indiretas por parte dos professores. Conforme os artistas que querem aperfeiçoar seu olhar sobre o mundo, a prática da educação somática não limitaria à exploração de suas paisagens interiores. A criação é, antes de tudo, um assunto de percepção; antes da obra, toda a esfera perceptiva dos indivíduos pode ser enriquecida pela educação somática com a condição, evidentemente, de o professor evocar as possibilidades de transferência de aprendizado. 38

Por outro lado, fora das fronteiras da prática artística noto cada vez mais o recurso à educação somática na área de projetos sociais. De minha parte, fora do campo da dança, acabo agora de terminar uma pesquisa-ação utilizando o método Feldenkrais com mulheres que sofriam de distúrbios alimentares. Fiquei surpresa ao constatar que, depois de somente certas semanas, algumas delas tinham de maneira muito profunda percebido o poder da educação somática, como prova esta conversa: E como uma espécie de metáfora, “faço isso com meu corpo, assim posso fazer isso com meu modo de perceber o mundo. Posso virar meu braço direito para trás e minha cabeça para a direita e posso experimentar coisas novas no meu cotidiano”. É como em inglês, seria chamado um template, como um pattern ou um desenho, uma planta, um esboço. “Vê-se que pode ser totalmente diferente. Uso meu corpo de maneira diferente e posso transferir isso e colocar em uma outra parte da minha vida”. Penso que é uma das coisas mais potentes. Podemos constatar nessa mulher a capacidade de generalizar seus aprendizados somáticos na sua relação com o mundo em geral.

Não é o caso de todas as participantes na pesquisa-ação. A maioria das outras participantes caminhou desde uma etapa de abertura à educação somática para uma etapa de interiorização, isto é, elas procuravam cada vez mais ocasiões para tirar proveito de suas aprendizagens numa variedade de situações. Essa mulher soube, por sua parte, transpor para o plano simbólico sua exploração no plano do movimento. Não é meu corpo de mulher que é o problema, é o ódio contra as mulheres. Ter atividades ajuda a me desfazer deste ódio que, apesar de mim, adotei. Vivemos todas num mundo de homens. Mesmo se não vivo com um parceiro que me bate, me ameaça, sinto-me ameaçada. De quantas maneiras tento me apagar? Quantas vezes calo-me, engulo, recalco em mim, como, vomito, encerro-me na minha casa e não me atrevo a sair – com medo de ofender? É pelo desenvolvimento da capacidade de pensamento crítico acompanhada da habilidade de abstração que a educação somática pode ser concebida como uma prática de consciência de si, podendo sustentar uma resistência ao discurso dominante e contribuir com o bem-estar. Se é verdade, “relações de poder opressivas impõem uma identidade que pesa como um código no nosso próprio corpo, então essas relações de opressão podem ser questionadas por práticas somáticas alternativas” (SHUSTERMAN, 1992, p. 68).

Isso dito, a educação somática não é uma panaceia, e os educadores somáticos devem ser críticos no que concerne à sua prática. Como defende Markula (2004), todas as práticas corporais são capazes de ser potencialmente emancipadoras ou opressivas. O que está de fato em jogo nas práticas corporais de tipo somático é a colocação em dúvida do que Foucault (1994) descreve como “jogos da verdade”, ou seja, um conjunto de procedimentos validando certas maneiras de fazer (dançar, alimentar-se ou ser uma mulher, só para dar alguns exemplos). Os jogos da verdade são necessários, afirma, mas ele indica que podem ser jogados com o mínimo de dominação, “mostrando as conseqüências, indicando que ele tem opiniões razoáveis, ensinando às pessoas o que elas não sabem a respeito de suas situações, sua condição de trabalho e sua exploração” (FOUCAULT, 1994, 39 p. 37). Nessa ordem de ideias a educação somática torna-se uma verdadeira práxis a ser incluída nos programas de formação em dança.

O avesso do avesso do corpo

Esta discussão me leva ao conceito de “avesso do avesso do corpo”. Quando soube do tema do seminário, fiz com bastante rapidez a associação do lado direito do corpo aos discursos dominantes em dança e do lado avesso ao discurso mais marginal da educação somática, sob a condição, é evidente, de que a experiência fenomenológica íntima seja tratada como práxis, ou seja, numa dimensão reflexiva e crítica. Nessa lógica, o que podia ser o avesso do avesso do corpo? A resposta não veio tão facilmente. O subtítulo do evento foi a minha inspiração: “a educação somática como práxis”. O saber práxico situa-se entre o saber prático e o teórico. Parafraseando Van der Maren (1995), práxis é a conceituação dos gestos da prática cotidiana, a reflexão do saber artesão posta em palavras.

Como participamos do seminário, para intercâmbios e desenvolvimento do campo da educação somática, entre outros, não podemos fazer economia da explicitação das práticas que estamos produzindo. Minha proposta é que o avesso do avesso do corpo seja o desafio da colocação em vocábulos de nossas práticas, paradoxalmente preconceitual e pré-vertebral, afirmarão alguns. Numa aproximação ao estilo de Bourdieu (1992), eu diria que consolidaremos a área da educação somática mostrando que ela existe pelas nossas práticas e também pelo discurso que produzimos.

De acordo com as nossas diversas perspectivas, o campo da educação somática pode ser apresentado por palavras ligadas ao vocabulário da educação, da psicologia, da sociologia, das ciências cognitivas, da filosofia, da anatomia etc. A escolha da terminologia não é indiferente, longe disso. No momento, a variedade terminológica reflete as ricas e diversas ênfases daqueles que a praticam. Numa outra ordem de ideias, sempre acerca da linguagem, nós todos já passamos por esta situação: as palavras aparecem muitas vezes objetivantes demais, inadequadas ou, pelo menos, insuficientes para abranger a complexidade do nosso mundo fenomenal e, mais ainda, do mundo da arte no qual nos situamos. Como falar dos momentos que parecem transcender nossa corporeidade? Ou de algumas das minhas experiências com o grupo de mulheres que sofriam de problemas alimentares? Do que eu sentia quando ia ajudar fisicamente em um movimento uma mulher com 33 kg ou uma de 90 kg e que, em contato com elas, eu entrava num espaço de relação além das aparências, além de si e do outro? Eu senti esse sentimento espiritual de conexão de existência durante minhas duas estadias precedentes no Brasil, quando as diferenças culturais se apagavam. Era como se, ao penetrar na matéria corporal, chegássemos um pouco a reconfigurar a nossa relação com o mundo. Nosso corpo constitui a tela de nossa aquisição e expressão do mundo. Isso me leva a perguntar qual modo de expressão convém para exprimir as múltiplas facetas do trabalho semântico. Os pós-estruturalistas insistiram nisto: a linguagem não reflete somente a realidade social, ela cria tal realidade. Nessa dinâmica, a somática não pode ficar independente de certa crítica social ou política. O título do seminário, “o avesso do avesso do corpo”, é aliás magnificamente estimulante, pois nos obriga a escapar de forma parcial de uma dominação de representação do mundo que tomaria como fato consolidado que a linguagem é um meio neutro e transparente. Uma vez admitida a ideia de que a articulação de uma práxis pede um exercício de linguagem importante e difícil, é para nós necessário, individual ou coletivamente, articular esse avesso do avesso do corpo. Ora, nessa dinâmica cabe se perguntar até que ponto um conhecimento, para ser transmissível, precisa ser explícito. Em que palavra, escrita ou texto podemos pensar? Pessoalmente investigo há alguns anos as metodologias de pesquisa e de escrita aprofundadas pelo pensamento pós-estruturalista (FORTIN; HOUSSA, no prelo; FORTIN, 2005). De maneira mais específica, desenvolvo o que Richardson (2000) reuniu sob o vocábulo de prática criativa analítica. Em outros termos, apresento algumas vezes os resultados de meus estudos por meio de uma linguagem evocativa e metafônica, pois em muitos casos isso pode chegar aos leitores mais do que como uma linguagem explícita, sobretudo graças à captação holística de uma situação dada. No entanto, num contexto universitário e científico, se é esse o lugar que a educação somática quer conquistar, a pergunta não é tão simples, porque a difusão, transferência ou mobilização dos saberes acontece de modo discursivo, o qual não tolera bem a polissemia. Se eu dei à minha conferência de abertura o título Nem no direito, nem no avesso: o artista e suas modalidades de si e do mundo, é porque acredito que podemos investigar formas que amalgamam o direito e o avesso, o sonho e a razão, o poético e o científico, a fim de alcançar diferentes auditórios. O seminário, e a publicação que dele decorrer, contribuirá para reunir as nossas tentativas individuais de esclarecimento de nossas práticas. Ele auxiliará, não tenho nenhuma dúvida, no entrelaçamento de uma comunidade de práticos6 reflexivos que articularão e dividirão suas práxis com um grande número de artistas e de educadores somáticos dos meios universitário e profissional. Os artistas e os educadores somáticos que teorizam sua prática têm dela um conhecimento íntimo, profundo e visceral, o que aumenta a necessidade de aproximação crítica. Termino reafirmando minha proposta de que o avesso do avesso do corpo consiste em mergulhar no nosso soma, no nosso corpo, na nossa corporeidade, no nosso ser (escolham a palavra que lhes convém) e de se distanciar ao mesmo tempo para discorrer sobre nossas práxis e compor, portanto, uma compreensão comum, sem entretanto perder nosso posicionamento epistemológico em relação ao “eu”. 6 Pessoas que praticam. 41

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