A EDUCAÇÃO SOMÁTICA E O PROFISSIONAL DA DANÇA


MEXER SEM TIRAR DO LUGAR:

A EDUCAÇÃO SOMÁTICA E O PROFISSIONAL DA DANÇA

por Débora Bolsanello

Fonte: http://www.movimiento.org/forum/topics/a-educa-o-som-tica-e-o-profissional-da-dan-a

RESUMO

O presente artigo reflete sobre a pertinência das técnicas de Educação Somática junto ao profissional da dança.  Seja como material de pesquisa coreográfica e aprimoramento técnico, como recurso pedagógico ou como instrumento para o controle de LER (Lesões por Esforços Repetitivos) e DORT (Doenças Osteoarticulares Relacionadas ao Trabalho), as técnicas de Educação Somática tornam-se para o profissional da dança um capital que bonifica seu campo de atuação seja como intérprete, coreógrafo ou educador.

O instrumento de trabalho do bailarino não é a dança,  mas o movimento. No mundo da dança contemporânea, o bailarino expande seu papel de intérprete para o de co-criador. Como se dá o empoderamento do bailarino ? Que abordagens orientam o artista do movimento a tornar-se mais dono de seu corpo ? É possível viver da dança sem hipotecar sua saúde ?

De outro lado, que mercado de trabalho o bailarino ocupa ? Teria o bailarino um papel educacional junto à população de sedentários ?  Seria ele um mentor para aqueles fervorosos adeptos do fitness que trabalham seus corpos de modo indiscriminado ?

Hoje, a dança está muito além de estilos e virtuosismos. E paradoxalmente, a dança enquanto espetáculo ainda requer do bailarino habilidades específicas. Onde se situa o profissional da dança nesse espaço aparentemente contraditório entre o apolínico aperfeiçoamento técnico e a dionísica liberação do corpo?

Uma grande parte das formações dos bailarinos ainda se estruturam a partir de uma ótica mecanicista do corpo que, segundo Woodruff (1999), privilegia o virtuosismo (maestria da forma), o quantitativo (o quão alto, o quão rápido, quão grande) e o automatismo (repetir até decorar a seqüência).

Partilho aqui germes de reflexões sobre a pertinência do ensino de técnicas de Educação Somática na formação do bailarino, seja como recurso para a prevenção de lesões, material para a composição coreográfica ou em sua capacitação como educador junto à clientela de não-bailarinos.

Uma tecnologia interna

Na América do Norte e na Europa, a partir dos anos 60, artistas e terapeutas avangardistas assumem o corpo como um laboratório. É a época das vivências espirituais, dinâmicas terapêuticas e experiências artísticas as mais variadas que centram-se na exploração da consciência e na liberação do corpo; na unificação da carne ao espírito.

Mesmo se alguns dos métodos de Educação Somática são criados muito antes da efervescência rebelde dos anos 60, é nessa época que essas abordagens começam a esboçar uma identidade comum. Partilhando o território de fisioterapeutas e bailarinos, passam a ser identificadas como consciência do movimento, bodywork, body-awareness. Bartenieff Fundamentals, Antiginástica, Técnica Alexander, Ideokinesis, Feldenkrais, Eutonia, Ginástica Holística, Cadeias musculares e articulares G.D.S., Body-Mind Centering, Ginástica Sensorial, Continuum, Somaritmos, Pilates,  Gyrotonic : métodos cujo espírito empírico-experimental revolucionou a maneira de se viver o corpo no ocidente.

Cada método de Educação Somática tem sua própria história, princípios, técnicas e preconizadas por um idealizador e desenvolvidas por seus colaboradores, discípulos e assistentes. Nesse artigo, focaremos nos princípios comuns dos métodos, que compreendem o corpo e a consciência como fenômenos interdependentes. A forma do corpo não é apenas o resultado da genética e das deformações impostas por valores socioculturais. Sua forma  é inteligente, capaz de regulação homeostática.

Hoje, com a crescente preocupação que se tem em relação à gestão do estresse e à qualidade de vida, esses métodos, regrupados sob o termo Educação Somática, não mais se limitam aos artistas do palco, mas vêm ganhando espaço em clínicas de fisioterapia e estúdios destinados a um público variado que necessita de uma reeducação do movimento.

Dispondo de um grande variedade de estratégias pedagógicas, os diferentes métodos de Educação Somática orientam o praticante  em um processo de reapropriação do sentir o corpo em suas múltiplas relações com o espaço. É vastíssimo o repertório de movimentos preconizados pelos professores dos diferentes métodos, mas partilham diretrizes comuns. Abaixo, enumeramos algumas delas:

  • Os movimentos são sustentados pelo ritmo respiratório próprio de cada pessoa;

  • Os movimentos de auto-massagem com uso de objetos têm por objetivo manter a funcionalidade do sistema proprioceptivo, estimulando a pele e (re)definindo a sensação dos eixos ósseos;

  • Privilegia-se uma redução do esforço na execução dos movimentos a fim de induzir o relaxamento de tensões excessivas, a regulação do tônus muscular dos músculos da dinâmica e a ativação de músculos da estática;

  • Os micro-movimentos propostos solicitam a elasticidade da cápsula e ligamentos das articulações;

  • Os movimentos lúdicos utilizam a imaginação e podem ampliar a imagem corporal, facilitar a desconstrução de padrões motores nocivos e o gradual estabelecimento de padrões motores mais harmônicos.

 

 

Prevenir lesões

Pesquisadores canadenses e australianos (Geeves 1990; Perreault 1988) estão de acordo que a lesão no caso dos bailarinos está associada ao uso repetitivo do corpo em um alinhamento inadequado, o que provoca estresse dos tecidos e desgaste das estruturas osteoarticulares (Howse 1983).

Segundo Fortin (1998), quando a coreografia é centrada no coreógrafo e  transmitida a um corpo desintegrado, as funções sensitivas e motoras do bailarino estão desarticuladas. O não-reconhecimento dos limites das estruturas do corpo pode resultar em acidentes ou em compensações musculoesqueléticas e dores crônicas. Em um modelo deste tipo, o aprendizado da coreografia é um treinamento onde a mente domina o corpo e a forma coreográfica é preponderante aos processos somáticos subjacentes à forma.

Figura 1. Sentindo e localizando a escápula.

 

Em uma aula de dança baseada em princípios da Educação Somática, a repetição é importante, porém a integridade do corpo do bailarino não é sacrificada em detrimento de sua performance. Por enfatizarem a consciência corporal e a aquisição de novas habilidades motoras, as estratégias pedagógicas da Educação Somática na formação do bailarino têm um impacto na qualidade da técnica do movimento dançado.

Esse entendimento é um divisor de águas no reino das práticas pedagógicas de dança. Para o primeiro paradigma (mecanicista), a repetição é o principal método para se aprender um movimento. Para o segundo paradigma (eu o chamarei de dinamicista ou sistêmico), a autopercepção é fundamental para obter maior conpetência no movimento e a melhora daperformance. (DOMENICI, 2010, p.78).

Localização dos eixos ósseos, diferenciação dos diferentes ângulos de amplitude articular, direção dos feixos musculares, distinção entre os tecidos muscular, conjuntivo, epitelial.  Um trabalho de refinamento da percepção corpórea ajuda o bailarino a executar melhor a coreografia, sentindo para agir, sabendo respeitar seus limites na execução de movimentos.  As técnicas somáticas atuam no refinamento da funcionalidade do sistema proprioceptivo, cujo papel é permitir o reconhecimento dos limites do corpo e da situação das partes do corpo entre si.

 

Alimentar o estético com o orgânico

 

As técnicas de Educação Somática não substituem as técnicas de dança. Associadas à linguagem coreográfica, seu papel é de propor um outro ângulo de execução da técnica de dança, qualquer que ela seja. Um ângulo que respeita os processos fisiológicos e as estruturas musculoesqueléticas do corpo.

Ao mesmo tempo,  as dinâmicas, oficinas, explorações e exercícios dos diferentes métodos de Educação Somática podem ser usados pelo bailarino como matéria prima: um alfabeto, um vocabulário na composição coreográfica. Indo mais além, o conceito de “soma”, substrato de cada um dos métodos de Educação Somática, têm uma estética própria e engendra uma linguagem.

O gesto dançado não é imitado pelo bailarino, nem imposto pelo coreógrafo, por um estilo ou uma determinada escola. As abordagens somáticas alimentam o processo criativo do bailarino, tornando-o co-autor, na medida em que a forma dançada emerge de sua própria experiência somática.

Figura 2.  O saber das articulações.

Figura 3. Criando o gesto dançado a partir da sensação da pele sobre a bola.

Coreógrafos buscam hoje corpos versáteis que conheçam o que é neutralidade somática podendo liberar-se de tiques estilísticos, se necessário. A linguagem da dança contemporânea exprime-se menos pelo preciosismo de formas impostas de “fora” ao corpo do bailarino e mais pelo materialidade do corpo em si. O fisiológico, o anatômico e o cinestésico passam a ser o alfabeto da dança contemporânea.

Por sua sensibilidade e simplicidade, essa experiência somática do bailarino pode ser comunicada a não-bailarinos de forma a incluí-los no universo da dança. Saulo Silveira (2010) defende que o movimento dançado não é exclusividade de corpos perfeitos. Nem ao menos de uma elite de descendência europeia. Hoje, trata-se de um direito de “cidadãos dançantes”[2], de cadeirantes[3], deficientes visuais[4],  mulheres carcerárias[5] e outros.

Educar com o movimento do corpo

 

Pela pela flutuação das políticas da cultura no Brasil, não é raro que o bailarino garanta sua sobrevivência ministrando aulas para um público de não-bailarinos que busca associar lazer e boa forma.

A secretária que tem a síndrome do túnel cárpico; o advogado que tem perturbações visuais decorrentes de longas horas de trabalho no computador; a adolescente cujo rendimento escolar é baixo e que necessita melhorar sua capacidade de concentração; o atleta que quer diminuir suas chances de desgaste articular; a professora, vítima de dores causadas pela tendinite; a criança, cujos pais percebem um problema de coordenação motora; um radialista que necessita sanar a crônica falta de ar; a dona-de-casa estafada; o massoterapeuta cujas dores de coluna diminuem seu rendimento profissional; o músico que necessita aprimorar a eficácia de seu gesto, etc.

Esses são alguns casos que o bailarino pode receber em seu estúdio.

Figura 4. Permitir o movimento do corpo de emergir por si próprio.

Instrumentado com técnicas de Educação Somática, o bailarino não necessita abordar os sintomas que as pessoas apresentam de modo terapêutico, mas ele pode agir de modo pedagógico. Ele pode atuar na inteligência proprioceptiva de seus alunos, desarticulando hábitos de movimentos que estabelecem os circuitos neurológicos que precedem a disfunção e a consequente aparição dos sintomas de dor.

A partir de um ponto de vista somático do corpo, o bailarino pode adaptar-se melhor à realidade corpórea dos não-bailarinos. Ele é capaz de ver o potencial de seus corpos além de suas limitações aparentes, estimulando sua expressividade e propondo a seus alunos modos mais funcionais e mais integrados de mover-se. Como agente educacional, o bailarino guia seus alunos a entrarem em contato com suas próprias sensações, reconhecendo limites e desenvolvendo seus potenciais.

Concluindo

Relativizar o peso de uma corporeidade massificada. Explorar novas fronteiras do movimento humano. Zelar pela integridade do corpo. Questionar atividades que desconetem o corpo  do espírito. Aliar o belo ao funcional.

São múltiplos os papéis daqueles que dançam.

Figura 5. Trabalhando abdominais sem risco de lesão.

Conjugadas à inteligência  proprioceptiva e ao talento cinestésico do bailarino, as técnicas de Educação Somática podem serem articuladas ora como material coreográfico,  ora como material didático junto aos não-bailarinos. Essas técnicas também podem servir como intrumentos de aprimoramento técnico e prevenção de distúrbios osteomusculares,  tornando-se assim um capital que potencializa seu campo de atuação seja como intérprete, coreógrafo ou educador.

REFERÊNCIAS

BERTAZZO, Ivaldo. Cidadão corpo: identidade e autonomia do movimento. São Paulo: Summus Editorial. 1998.

BOLSANELLO, Débora Pereira (org.) Em pleno corpo: educação somática, movimento e saúde. Curitiba: Editora Juruá. 2010.

DOMENICI, Eloisa. O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamento epistemológico sobre as teorias do corpo. Pro-Posições. Campinas, v. 21, n.2 (62), p.69-85, maio/ago. 2010. Disponível emhttps://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/3130. Acesso em 26 de janeiro de 2012.

FORTIN, Sylvie. Educação somática: novo ingrediente da formação prática em dança. Cadernos do GIPE-CIT. Estudos do Corpo. Salvador, Editora da UFBA, n.2, fevereiro, 1999.

FORTIN, Sylvie. Quando a ciência da dança e a educação somática  entram na aula de técnica de dança. Pro-Posições. Campinas : Editora da UNICAMP, v. 9, n. 2 (26), 79-96, 1998.

GREENE, Deborah. Assumptions of somatics. Somatics. Nova York, no 2, vol. 11, p. 50-54, 1997.

HANNA, Thomas. What is Somatics? Somatics. Nova York no 2, vol. 14, n° 2, p. 50, 2003.

JOHNSON, Don (org.). Bone, breath and gesture: practices of embodiment. California: North Atlantic Books, 1995.

SILVEIRA, Saulo. Os princípios e fundamentos corporais Bartenieff  como precursores de uma poética exclusiva. In BOLSANELLO (Org.). Em pleno corpo : educação somática, movimento e saúde. Curitiba : Editora Jurua, 2010.

WOODRUFF, Dianne. Treinamento na dança: visões mecanicistas e holísticas. Cadernos do GIPE-CIT. Estudos do Corpo. Salvador, Editora da UFBA, n. 2, janeiro 1999.



[1] Antropóloga pela Université de Montréal e mestre em dança pela Université du Québec à Montréal, Canadá. Organizadora do livro Em pleno corpo: Educação Somática, movimento e saúde (editora Juruá, Curitiba, 2010). Diretora pedagógica da Formação em Técnicas de Educação Somática. www.movimentoes.com / deborabolsanello@gmail.com

 

[2] Conceito criado por Ivaldo Bertazzo.

[3] Grupo Giro (Brasil), de Rosângela Bernabé e Corpuscule Danse (Canadá), de France Geoffroy.

[4] Blind Date (Canadá), de Andrée Dumouchel.

[5] Dança no presídio (Brasil), de Vívian Cáfaro.