Educação somática: o corpo enquanto experiência
Débora Bolsanello
Université du Québec à Montreal – Canada
Resumo: Elaboramos aqui uma definição da educação somática, campo ainda pouco conhecido no Brasil. Abordamos principalmente o conceito de corpo enquanto experiência, pilar da pedagogia da educação somática. A educação somática é um campo teórico-prático que se interessa pelas relações entre a motricidade humana, a consciência e o aprendizado. A partir da mudança de paradigma estabelecida pelo pós-Positivismo e do questionamento epistemológico inaugurado pela Fenomenologia, a experiência humana e a subjetividade passam a ser validadas como fonte de conhecimento. Para os profissionais da área de educação somática, não é o corpo da pessoa que é abordado, mas a sua experiência através do corpo. Para tanto, o professor de educação somática utiliza as seguintes estratégias pedagógicas: a sensibilização da pele, o aprendizado pela vivência e a flexibilidade da percepção.
Palavras-chave: Consciência corporal. Métodos educacionais alternativos. Sensação. Percepção. Educação somática.
Somatic education: the body as experience Abstract: In this article, I propose a definition for somatic education, a field still unknown in Brazil. I present the concept of body as an experience which is central for the pedagogy of somatic education. Somatic education is a theoretic and practical field that focuses on the relations between human mobility, consciousness and the learning process. The change of paradigm brought forward by post-Positivism and the epistemological revolution announced by Phenomenology entails that the human experience and subjectivity be recognized as valuable source of knowledge. Anchored on these philosophical grounds, somatic educators do not tackle the body of a person but rather the experience a person has through the body. For this reason, somatic educators use the following pedagogic strategies: the sensibilization of the skin, the learning through experience and the flexibility of perception. Key Words: Consciousness of the body. Alternative methods. Sensation. Perception. Somatic education. D. Bolsanello
100 Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005 restrições, responde às leis físico-químicas tal como o fazem as máquinas.” (VIEIRA,1997, p. 12)
Sobre os conceitos contemporâneos de corporeidade, o sociólogo francês Le Breton (2001, p.21) propõe um corpo cuja estética é ditada pela cultura das academias de aeróbica (“body building”).
O corpo contemporâneo é essencialmente tecnocrata, pré-simbiótico à cibernética e tendo em breve seu destino manipulado pelos sacerdotes da genética. […] um corpo cuja única dignidade se cifra na sua transformação pela técnica. O body builder diz de si mesmo um “construtor de corpos” […]. A assistência médica à procriação induz à uma concepção da criança fora do corpo, à margem da sexualidade, fora de qualquer relação com o outro […]. A comunicação sem corpo e sem rosto da rede [internet] favorece as identidades múltiplas, a fragmentação do sujeito engajado numa série de encontros virtuais em relação aos quais ele adota cada vez um nome diferente, talvez mesmo idade, sexo, profissão, escolhidos conforme as circunstâncias. O corpo torna-se dado facultativo. Paralela às concepções mecânica e dualista do corpo, uma outra maneira de conceber o corpo começa a emergir gradualmente desde o Pós-Revolução Industrial. Filósofos como Merleau-Ponty (1949) colocaram em evidência a subjetividade do ser humano em sua experiência corpórea. Herdeiros da corrente filosófica desenvolvida por MerleauPonty e conhecida como Fenomenologia, cientistas contemporâneos passam a interessar-se pelo corpo não mais como um objeto, mas como um fenômeno da experiência humana. Em entrevista com Scharmer (2000), Varela, biólogo chileno, afirma que: “[…] o problema não está em que não sabemos suficientemente sobre o cérebro ou sobre a biologia; o problema é que não sabemos suficientemente sobre a experiência.”1 .
O conceito de corpo enquanto experiência toma forma paralelamente às concepções contemporâneas de “body builder”, “corpo objeto”, “corpo máquina”, “corpo cibernético”, “corpo biomédico” e emerge de uma mudança de paradigma no mundo das ciências (do Positivismo ao PósPositivismo) e do profundo questionamento epistemológico anunciado pela Fenomenologia. O conceito de corpo enquanto experiência se insere numa ideologia holística e ecológica que preconiza o homem como um ser total que, como todo ser vivo, tem a capacidade de se auto-regular :
de 1 “(…) the problem is not that we don’t know enough about the brain or about biology, the problem is that we don’t know enough about experience.” SCHARMER, O. (2000). “Conversation with Francisco Varela”, entrevista publicada em 20 de junho de 2000, disponível no site Acesso em 9 de julho de 2000.
buscar um estado de equilíbrio físico, psíquico, social e em suas relações com o meio ambiente. Educação somática: a experiência e a subjetividade em primeiro plano A educação somática é um campo teórico e prático que se interessa pela consciência do corpo e seu movimento. Muito embora o campo exista há mais de um século na Europa e na América do Norte, a denominação “educação somática” foi criada em 1995 pelos membros do Regroupement pour l’Éducation Somatique (RES)2 em Montreal, no Canadá. Sob a denominação de educação somática regrupam-se diferentes métodos educacionais de conscientização corporal dentre os quais se destacam: Técnica de Alexander, Feldenkrais, Antiginástica, Eutonia, Ginástica Holística, etc.
Não nos deteremos a detalhar cada um dos métodos, mas focalizaremos o que é comum entre eles: o conceito de corpo enquanto experiência, de onde se originam os aspectos pedagógicos da educação somática. É unânime entre os professores de educação somática de diferentes linhas a visão de que o corpo humano é um organismo vivo indivisível e indissociável da consciência. O termo somático vem da palavra grega soma e nos fornece uma pista para compreendermos o conceito de corpo enquanto experiência. Hanna (2003, p. 50) distingue os conceitos de corpo e soma: “[…] soma é o corpo subjetivo, ou seja, o corpo percebido do ponto de vista do indivíduo.
Quando um ser humano é observado de fora, por exemplo, do ponto de vista de uma 3ª pessoa, nesse caso, é o corpo que é percebido.” Para os professores de educação somática, a saúde é um estado de bem estar global da pessoa em seu meio ambiente. Segundo esta visão da saúde, os diferentes desequilíbrios das funções fisiológicas, psíquicas, cognitivas e afetivas são abordados pelo professor de educação somática como fazendo parte de um todo somático. Visto que a mobilidade do corpo toca todas as áreas da vida humana, os métodos de educação somática têm aplicações das mais variadas. Dependendo da história de cada aluno, de suas necessidades e de seu engajamento no processo educacional, a educação somática pode lhe dar resultados eficazes: na diminuição de sintomas antálgicos; na melhora da coordenação motora; na prevenção de problemas músculos-esqueléticos resultantes de movimentos repetitivos; no desenvolvimento da capacidade de concentração; na recuperação do esgotamento físico e mental; na melhora da
2 Para obter mais informações sobre o Regroupement pour l’Éducation Somatique, visitar o site: www.res.com. Educação Somática Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005 101
respiração; na melhora da flexibilidade muscular e amplitude articular; no relaxamento de tensões excessivas e ativação de músculos pouco utilizados; na transformação de hábitos posturais inadequados e no desenvolvimento da capacidade de expressão. Nesse sentido, os professores de educação somática atendem uma clientela muito variada, apresentando queixas as mais distintas: a secretária que deseja prevenir a síndrome do túnel cárpico e as perturbações visuais decorrentes de longas horas de trabalho no computador; o estudante que deseja melhorar sua capacidade de concentração; o atleta que visa diminuir suas chances de desgaste articular; o trabalhador que deseja aliviar dores causadas pela bursite ou tendinite; a criança, cujos pais percebem um problema de coordenação motora; um cantor, ator ou professor que necessita melhorar o alcance de sua voz; a dona de casa que necessita recuperar-se da estafa e do stress psicológico; o chefe de família cujas dores de coluna diminuem seu rendimento profissional; o desportista que necessita aprimorar a eficácia de seus gestos; o músico que visa prevenir problemas articulares e posturais decorrentes de movimentos repetitivos; a bailarina que deseja refinar sua expressividade; o fisioterapeuta que deseja complementar seus estudos e abrir seus horizontes profissionais, etc. Longe de ser uma panacéia que promete a cura de todos os males, a educação somática não exclui o acompanhamento médico, fisioterápico ou psicológico, caso necessário. Porém, a particularidade da educação somática é que suas estratégias são principalmente educacionais e investem na responsabilização do aluno.
Para a educação somática, um processo terapêutico eficaz comporta um aspecto educacional onde a pessoa toma consciência do papel que seus hábitos de vida têm, tanto no quadro patológico quanto na prevenção e na solução de seus problemas. Consciente de que seu bemestar é sua responsabilidade, o aluno se compromete no processo de recuperação da saúde. Esse compromisso é sem dúvida um fator que torna o processo eficaz. Embora cada método constituinte do campo da educação somática tenha sua própria história e técnicas, todos utilizam uma grande variedade de exercícios onde o aluno estará deitado, sentado, em pé ou movimentando-se através do espaço. É frequente a utilização de acessórios tais como bolas de borracha de diversos tamanhos, bastões de madeira, tubos de papelão, sacos de areia, etc. As aulas podem ser em grupo ou individuais e sua duração média é de 1hora e 30 minutos. Para tornar o conceito de corpo enquanto experiência mais tangível, o ilustraremos através de três estratégias pedagógicas propostas pelos professores de educação somática: o aprendizado pela vivência; a sensibilização da pele e a flexibilidade da percepção.
Há uma estreita relação entre essas noções. Nosso objetivo em separá-las é o de facilitar a leitura. O aprendizado pela vivência Nas aulas de educação somática, o foco não é o tratamento nem a correção de disfunções fisiológicas ou psicológicas. O professor de educação somática não prepara suas aulas em função somente dos sintomas apresentados pelos alunos, porque consideramos que o sintoma é um “reflexo de todo um sistema que necessita reorganizar-se.” (JOLY, 1994, p.6).
Propõe-se ao aluno a vivência de uma organização corpórea mais global e equilibrada, sendo por isso, mais funcional. Os diferentes métodos de educação somática utilizam estratégias pedagógicas que visam levar o aluno a tomar consciência da relação entre os sintomas que ele apresenta e a totalidade de seu corpo. O aluno entra na primeira etapa do caminho de reestabelecer seu equilíbrio quando ele é capaz de reconhecer que os sintomas físicos ou psíquicos que ele apresenta têm estreita relação com sua maneira habitual de organizar seus movimentos e com a percepção que ele tem do corpo. A intenção do professor não é a de corrigir o aluno. É a própria experiência do aluno que torna-se “o veículo da mudança”3 , como propõe Greene (1997, p.50) . Essa fase de tomada de consciência faz parte de um processo de (re)aprendizagem. A neuróloga e educadora norte-americana Hannaford (1995, p.17) aborda a capacidade inata que temos de aprender e reaprender : Na medida em que crescemos, nos movemos e aprendemos, as células de nosso sistema nervoso se conectam entre si formando padrões neurais complexos. A plasticidade é uma característica intrínsica do sistema nervoso que nos permite aprender e nos adaptarmos em resposta à traumatismos [físico e/ou psíquico]: re-aprender.4
O objetivo do professor de educação somática é de levar o aluno a tomar contato com as sensações que ele tem de seu próprio corpo. O professor visa sobretudo despertar a atenção do aluno ao processo de aprendizado dos exercícios. A ênfase do ensino é posta não sobre o quê se aprende mas como se aprende.
3 “Experience is the vehicle for change.” 4 “As we grow, as we move, as we learn, the cells of our nervous system connect in highly complex patters of neural pathways. […] Neural plasticity is an intrinsic, beneficial characteristic of the nervous system which gives us both the ability to learn and the ability to adapt in response to damage – to relearn.” D. Bolsanello 102 Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005
Nesse sentido, o professor de educação somática não apenas ensina exercícios, mas ele dirige a atenção de seus alunos de maneira que eles aprendam a sentir e perceber o que o corpo faz quando realiza os exercícios. O aluno é levado a concentrar-se no movimento proposto, evitando um comportamento automático e ausente. Ele aprende o conteúdo do exercício através de sua própria experiência e não a partir de teorias ou manuais, nem copiando o modelo cinestésico do professor. A experiência do aluno é valorizada pelo professor como sendo única na medida em que seu objetivo é levá-lo a tomar contato com o aspecto subjetivo de seu corpo. Em entrevista com Scarmer (2000), Varela fala sobre a validação da subjetividade no campo da ciência cognitiva : “Na verdade, dentro da ciência cognitiva, na área de estudos sobre a consciência, essa noção implica voltar-se a trabalhar com a experiência, a importância de se considerar seriamente a experiência subjetiva […]”5
A subjetividade do aluno, para o professor de educação somática, não é “coisa pessoal” ou “pura opinião”, conforme afirma Vieira (1997, p. 3): “a subjetividade passa ao status de fonte de dados.” Tendo em conta que o processo de aprendizado na educação somática visa validar a experiência subjetiva de cada aluno como fonte de conhecimento, o professor evita julgar o discurso que seus alunos têm sobre seus próprios corpos ou de impor seus valores sobre a estética ou a eficácia do corpo. Seu papel é sobretudo o de guiar o aluno em suas descobertas somáticas, suscitar uma reflexão sobre a corporeidade e formar nos alunos um senso crítico sobre os valores sócio-culturais de estética e saúde. Para o professor de educação somática, uma aprendizagem autêntica e durável é fundamentada na experiência, porque “O aprendizado é experiência e sensação. A sensação constitui a base a partir da qual se desenvolvem conceitos e idéias. ” (HANNAFORD, 1995, p.48).6 Dentro desse ótica, o campo da educação somática fundamenta-se numa contínua sistematização e estruturação do conhecimento empírico: a prática é a base da teoria. A sensibilização da pele 5 “In fact, within cognitive science in the domain of consciousness studies, this notion implies a going back to work with experience, the importance of taking seriously first-person experience.” SCHARMER, O. (2000). “Conversation with Francisco Varela”, entrevista publicada em 20 de junho de 2000, disponível no site Acesso em 9 de julho de 2000. 6 “ Experience and sensations are learning. Sensations form the base understanding from which concepts and thinking develop.” De modo geral, nas sociedades urbanas, podemos constatar uma hiperutilização do sentido da visão: a quase supremacia da escritura e leitura como meios de fabricação e circulação do saber; a valorização da televisão, do cinema e do vídeo como cultura, lazer e informação; a indispensável utilização do computador, a estética dominante dos topmodels e a febre de consumo de produtos vendidos através de suportes visuais (Internet, televisão, foto).
Embora a maioria de nós saiba que atualmente a informática oferece inúmeros programas que permitem a manipulação da imagem, a mídia atesta a veracidade da informação sobretudo através da imagem, possivelmente manipulada…O que dizer dos outros sentidos, face à “onisciência” da visão em nossa sociedade contemporânea? Fronteira entre Eu e o Outro, a pele é o maior orgão do corpo humano, lugar por excelência da afetividade, do desejo, da intimidade e da identidade. De um ponto de vista fisiológico, os orgãos sensoriais estão vinculados ao tecido epitelial: o som atinge a pele da orelha e do aparatos mais sensíveis da orelha interna; o paladar é o contato de um alimento com a pele da língua. O mesmo se dá com o olfato, cujos estímulos passam pela pele das narinas para serem codificados pelo sistema nervoso. Segundo Roquet (1991, p.18), o órgão pele sintetiza todas as funções dos outros sentidos. A pele pode captar, pela vibração, ondas sonoras e ondas luminosas. Ela tem um papel como regulador térmico e se aparenta ao sistema respiratório, pois respiramos também pela pele.
A estimulação cutânea ativa o sistema neurovegetativo e esse age sobre o sistema respiratório e visceral. Tal como o sistema nervoso, a pele origina-se da ectoderme, a camada de células mais externa do embrião. Através dos proprioceptores, a pele é sensível ao toque, que informa ao sistema nervoso sobre espessura, forma, profundidade, densidade, etc. Muito embora a pele seja “um órgão determinante no desenvolvimento do comportamento humano”, como afirma Montagu (1979, p. 210), para a maioria das pessoas, a sensação do toque é restrita ao período da infância ou às relações íntimas. A visão sendo o sentido privilegiado no cotidiano dos habitantes dos grandes centros urbanos e o toque sendo a faculdade sensorial menos requisitada nesse contexto, o corpo humano passa a ser apreendido sobretudo por sua aparência. Face à utilização excessiva que os indivíduos fazem da visão em nossa sociedade e dos problemas de saúde que isso pode ocasionar, a educação somática propõe exercícios que visam um reequilíbrio sensorial. O toque é a sensação mais Educação Somática Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005 103 primitiva do ser humano e é a primeira via senso-motora que os professores de educação somática abordam. Figura 1. Sequência de exercícios de educação somática. Figura 2. Utilização de acessórios visando a estimulação tátil.
Os exercícios de educação somática propõem a sensibilização da pele como um meio de (re)ativação do sistema proprioceptivo. Sabemos que o sistema proprioceptivo tem receptores na pele, nos músculos, ligamentos, tendões e articulações que são responsáveis de informar o cerebelo das diferenças de pressão sobre o corpo e de sua orientação no espaço, informações absolutamente necessárias à sobrevivência do organismo e à manutenção da saúde. O espelho não é utilizado nas aulas de educação somática e o professor de educação somática raramente demonstra os exercícios aos alunos. O referencial objetivo da imagem do corpo no espelho ou do corpo-modelo do professor cedem lugar à subjetividade do aluno, que aprende a tomar suas próprias sensações como referência do aprendizado. Dentro do contexto pedagógico da educação somática, os acessórios (bolas de borracha e de espuma, bastões e tijolos de madeira, saquinhos de areia, etc.) tornam-se referências de contato com a pele e instrumentos de auto-massagem, levando o aluno à (re)definir as fronteiras de seu corpo e a renovar sua relação com o mundo exterior (figura 2). Montagu (1979, p. 215) afirma que : “O despertar da consciência de si é em grande parte uma questão de experiência tátil”.7 De um ponto de vista psicológico, a sensibilização da pele proposta pela educação somática é uma estratégia pedagógica 7 « L’éveil de la conscience de soi est en grande partie une question d’expérience tactile. ». utilizada pelo educador para levar o aluno à (re)descobrir-se além de sua aparência. Por exemplo, no caso de pessoas de personalidade introvertida com tendências anti-sociais e depressivas, a sensibilização da pele pode levá-los a uma relação mais sadia com o “mundo exterior” através de uma (re)descoberta da afetividade, da auto-estima, da sensualidade e da identidade, sem as quais a vida torna-se monótona e insípida. No caso de alunos extremamente extrovertidos e que apresentam distúrbios de comportamento como a hiperatividade e a falta de concentração, a partir da sensibilização da pele, o professor pode levar esse tipo de aluno a gradualmente entrar em contato com o espaço interior do corpo (pulsações, músculos, órgãos, líquidos, etc).
Assim, a atenção do aluno hiperativo é dirigida progressivamente para sua própria interioridade. Através de vivências somáticas que começam pela estimulação tátil, os alunos aprendem de maneira gradual a conhecer-se, a respeitar as tendências de sua personalidade, a visitar outras facetas menos conhecidas de si mesmos e a desenvolverem habilidades pessoais que os levarão a estabelecer relações mais equilibradas com o meio. A flexibilidade da percepção Vimos anteriormente que as propostas da educação somática orientam o aluno a um refinamento de sua capacidade de sentir(-se). Por exemplo, um aluno poderá surpreender-se ao perceber pela primeira vez que sua “barriguinha”, da qual ele tanto reclama, tem relação com a distribuição de suas tensões musculares e seus hábitos D. Bolsanello Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005 posturais. O fato de sentir a “barriguinha” como parte de um “todo somático” pode levar esse aluno a transformar sua maneira de se perceber, por exemplo, desmistificando “seu defeito”. Tomando consciência em primeiro lugar de como ele se sente e se percebe, esse aluno poderá, durante as aulas, abrir-se à experimentar sensações menos habituais, como por exemplo, o de relaxar tensões musculares crônicas e de reorganizar a dinâmica de sua postura. Vieira (1997, p. 16) nos fornece uma pista de como a questão da percepção é abordada nas aulas de educação somática : […] caso nos movimentemos de uma forma diferente, as sensações cinestésicas nos parecerão estranhas e inadequadas. Por exemplo, se tenho o hábito de parar em pé mantendo uma forte contração dos músculos rotadores externos do quadril, a sensação que terei quando relaxar essa musculatura é que a articulação está em rotação interna e não em rotação neutra, pois em minha postura habitual, a percepção que tenho de rotação neutra é, na verdade, uma rotação externa. Assim, para mudar um hábito, é provável que tenhamos que vivenciar sensações que, muitas vezes, nos parecem estranhas (…) Figura 3.
Abrindo os horizontes da percepção através do corpo. Figura 4. : Três eixos do ensino no campo da educação somática. Os exercícios propostos nas aulas de educação somática se baseiam no pressuposto de que o corpo é indivisível e indissociável da consciência e que “somos simultaneamente seres individuais e interconectados.” (GREENE, 1997, p. 52). O aluno aprende na prática que suas sensações, percepções, emoções e faculdades intelectuais são estreitamente interligadas em relações dinâmicas. O objetivo é tornar mais flexível a percepção que a pessoa tem dela mesma e de suas interações no espaço físico e social onde vive, tal como afirma Greene (1997, p.52): “O interior e o exterior constituem um todo dinâmico e o corpo humano é o locus onde acontece a sinergia entre o exterior e o interior.”8 8 “Internal and external constitute one singular whole process; the embodied human is the site of this synergistic merger.” SENSAÇÃO relaxamento disponibilidade concentração estimulação tátil auto-observação presença aquiagora corpo enquanto experiência PERCEPÇAO exploração de sensações novas e maneiras diferentes de movimentar-se descoberta VIVÊNCIA atenção direcionada hábitos posturais reações, compensações musculares, automatismos consciência dos limite e do potencial do corpo D. Bolsanello Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005
Quando dirigimos nossa atenção de maneira consciente, nossa percepção se transforma. Dois exemplos de exercícios ilustram essa proposta. No primeiro, o aluno está deitado com os joelhos flexionados e os pés apoiados no chão. O professor pede que o aluno pressione o solo com os dois pés e observe o impacto desse movimento em outras partes de seu corpo: seu quadril, tórax e cabeça. O professor não diz ao aluno para mover o quadril, o tórax e a cabeça pressionando os pés no chão. Ele formula a proposta de tal maneira que o aluno é levado a observar o circuito do movimento no seu próprio corpo, que parte da pressão dos pés no chão e percorre toda a coluna vertebral, passando pelos tornozelos, pelos joelhos, pelo quadril e tórax até mover a cabeça. Dependendo da saúde articular e da capacidade de coordenação motora da pessoa, o aluno faz a vivência de que o que antes lhe pareciam segmentos (pés, tornozelos, joelhos, pernas, quadril, tórax, cabeça) podem revelar-se como um todo solidário quando nos movemos de maneira consciente. O segundo exemplo é um exercício de rolar a cabeça sobre um tubo de papelão (figura 3). O exercício é simples, mas as diretivas são complexas, com o objetivo de mudar a maneira automática habitual com a qual a pessoa executa os movimentos mais corriqueiros. Ao invés de simplesmente dizer : “rolem a cabeça sobre o tubo”, o professor canaliza a atenção do aluno para vários aspectos da ação de movimentar a cabeça, enfatizando a simultaneidade dessas ações. O professor pede que a pessoa sinta o ponto de contato da parte da cabeça que está apoiada sobre o tubo9 e propõe que o movimento de rolar a cabeça sobre o tubo seja coordenado com o rítmo respiratório de cada um. O aluno deve utilizar todo o período de expiração para mover a cabeça do centro para um dos lados e ao inspirar, deve mover a cabeça do lado de volta ao centro. A operação é repetida várias vezes e ao mesmo tempo que ela se desenrola, o professor continua a orientar a atenção do aluno, pedindo que ele sinta se o movimento das vértebras cervicais é de igual qualidade quando ele rola a cabeça para a direita e para a esquerda. Mais adiante, o professor acrescenta a diretriz de observação do espaço interior do rosto, o volume da cabeça. Por fim, o professor convida o aluno a escutar o som que sua cabeça faz ao rolar sobre o tubo.
Nos dois exemplos citados acima, podemos constatar que o professor utiliza exercícios que propõem um jogo de percepção, onde a atenção do aluno é exercitada a focalizar-se 9 A região ocipital é um carrefour de músculos que têm sua inserção nas omoplatas, nas clavículas, no externo e em vértebras cervicais. A região ocipital tem ligação com a visão. O contato da cabeça com o tubo é uma estratégia para se sentir a estrutura óssea do crâneo massageado e ao mesmo tempo em várias facetas da ação. As modificações de percepção propostas nas aulas de educação somática resultam de exercícios que exigem do aluno a integração de faculdades motoras e cognitivas. Essa estratégia pedagógica tem o objetivo de levar o aluno a conscientizar-se de que a percepção é uma faculdade tão dinâmica e flexível quanto seu próprio corpo e em igual processo de transformação. O aluno compreenderá que a percepção que se tem do corpo depende sobretudo do ângulo que ele adota para observá-lo, como afirma Capra (1996, p.67): “[…] o que denominamos árvore depende, como dizemos em ciência, de nossos métodos de observação.”10 Através de exercícios que desafiam a atenção do aluno e onde seu corpo é levado a adotar posições inusitadas e um rítmo pouco familiar, a percepção que o aluno tem de si e do meio torna-se mais flexível.
O contexto das aulas de educação somática é um laboratório onde o aluno desenvolverá uma fina capacidade de adaptação as mais variadas situações. De acordo com sua personalidade e com as circunstâncias onde ele vive, esse aprendizado se refletirá sem dúvida em seu cotidiano. Conclusão Traçamos uma definição do campo da educação somática enfocando brevemente o contexto histórico e sócio-cultural onde seu conceito central de corpo enquanto experiência emergiu. Vimos que, ao contrário dos valores veiculados pelos modelos “body builder”, “corpo-objeto”, “corpomáquina”, “corpo-cibernético”, “corpo-biomédico”, o corpo enquanto experiência traduz a indissociabilidade do corpo e da consciência. A partir da mudança de paradigma do Pós-Positivismo e do questionamento epistemológico inaugurado pela Fenomenologia, a experiência humana e a subjetividade deixam o status de “simples opinião” e passam a ser validadas como fonte de conhecimento. Sob essa ótica filosófica, o professor de educação somática não se interessa somente pelo corpo da pessoa, mas principalmente por sua experiência através do corpo. Nesse sentido, a educação somática propõe não um tratamento médico, fisioterápico ou psicológico, mas um processo de aprendizado. Trata-se de um campo teóricoprático educacional que se interessa pelo movimento do corpo humano e que tem aplicações as mais variadas: a diminuição de sintomas antálgicos; a melhora da coordenação motora; a relaxando essa região, mas também para se ter um impacto de relaxamento sobre os músculos oculares.
Educação Somática Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2005 prevenção de problemas músculos-esqueléticos; a melhora da respiração; a melhora da flexibilidade muscular e da amplitude articular; o relaxamento de tensões excessivas e ativação de músculos pouco utilizados; a transformação de hábitos posturais inadequados e o desenvolvimento da capacidade de expressão. Em entrevista com Scharmer (2000), Varela expõe uma reflexão que concerne o pressuposto central da educação somática: Todos nós sabemos que podemos nos tornar conscientes, pois isso acontece a todo momento. De repente, você se torna consciente disto ou daquilo, seja a nível interno ou externo.
A questão é : o ato de tornar-se consciente pode ser cultivado como uma habilidade? A estruturação dessa habilidade essencial é, para mim, o foco de um estudo fundamental. 11 Segundo minha experiência como professora de educação somática, nosso objetivo através dos exercícios é o de cultivar a habilidade que o homem tem de se tornar consciente. Para tanto, o professor constrói suas aulas articulando continuamente três eixos: a sensibilização da pele, o aprendizado pela vivência e a flexibilidade da percepção. O primeiro eixo consiste a levar o aluno a estar presente e a fazer-se disponível ao aprendizado; o segundo eixo é de direcionar a atenção do aluno a tomar consciência de suas reações motoras, hábitos posturais, compensações musculares, limites e potencial. O terceiro eixo é um convite ao aluno para entrar em um estado de exploração, tornando-se ele próprio a referência de seu aprendizado. (Figura 4). Podemos concluir que o conceito central de corpo enquanto experiência deixa entrever que na medida em que nos aprofundamos na realidade corpórea de nossa existência, tocamos a capacidade inata que o ser humano tem de sentir e tornar-se consciente. Podemos então reconhecer nossos limites, explorar nosso potencial, desenvolvê-lo e contribuir de modo positivo ao meio onde vivemos.
Referências CAPRA, Fritjof. The web of life. New York: Doubleday, 1996. 10 “[…] what we call a tree depends on our perception. It depends, as we say in science, on our methods of observation.” 11 “We all know we can become aware, it happens to us all the time. You suddenly become aware of this, become aware of that, whether it be external or internal. The question is, can it be cultivated as an ability? The structuring of this essential ability is, to me, a fundamental focus of study.” SCHARMER, O. (2000). “Conversation with Francisco Varela”, entrevista publicada em 20 de junho de 2000, disponível no site Acesso em 9 de julho de 2000. GREENE, Deborah. Assumptions of somatics. Somatics, New York, v.11, n.2, p. 50-54, 1997. HANNA, Thomas. What is Somatics? Somatics, New York, v.14, n.2, p.50, 2003. HANNAFORD, Carla. Smart moves: why learning is not all in your head. Arlington: Great Ocean Publishers, 1995. JOLY, Yvan. Des psychothérapies d’orientation corporelle à la méthode Feldenkrais. Bulletin d’accueil, Dunkerque, p.6, 1994. LE BRETON, David. O corpo é rascunho. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p.21, 17 de mar. 2001. MERLEAU-PONTY, Marcel. Phénoménologie de la perception. Paris: Éditions du Seuil, 1949. MONTAGU, A. La peau et le toucher. Paris: Éditions du Seuil, 1979. ROUQUET, Odile. Les pieds à la tête, la tête aux pieds. Paris: Recherche en Mouvement, 1991. SCHARMER, O. Conversation with Francisco Varela, entrevista publicada em 20 de junho de 2000. Disponível em: Acesso em: 9 jul. 2000. VIEIRA, Adriane. O método de cadeias musculares e articulares de G.D.S.: uma abordagem somática. Artigo inédito, não publicado. Cópia de disquete gentilmente cedida pela autora. 1997. Endereço: 5273 Chabot Montréal – Québec Canada H2H1Y9
E-mail: deborabolsanello@yahoo.com
Manuscrito recebido em 18 de abril de 2005. Manuscrito aceito em 03 de agosto de 2005.