Educação Somática: Os fundamentos Corporais Bartenieff [1]
(Entrevista com Ciane Fernandes em Julho de 2003)
Autor: Rosely Conz [2] – roselyconz@yahoo.com.br
Rosely Conz – Como você teve contato com o método “Bartenieff Fundamentals”?
Ciane Fernandes – Inicialmente, fiz aulas de Análise Laban de Movimento na disciplina Effort/Shape do Dance & Dance Education Program da New York University (NYU), com Dr. Ann Axtmann, que me incentivou a fazer a formação completa no Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies (LIMS), New York. Consegui que esta formação contasse créditos para meu doutorado na NYU, então pago pela CAPES, que conseqüentemente aprovou o pagamento também do Certificado em Análise de Movimento (CMA) no LIMS, onde tive um treinamento intensivo nos Fundamentos durante um ano (junho de 1993 a agosto de 1994).
RC – Fale-nos um pouco sobre as teorias, conceitos e objetivos do método desenvolvido por Bartenieff.
CF – Bartenieff desenvolveu seu trabalho como parte integral do Sistema Laban. Ela nunca disse que fazia algo separado do Sistema. Muito pelo contrário, sempre sublinhou o fato de seus Princípios e Fundamentos serem um desenvolvimento inerente ao Sistema Laban. Tanto que, ao realizar os Bartenieff Fundamentals (BF), aplica-se todos os conceitos de Laban, como pontos no espaço, qualidades expressivas, formas e relacionamentos, etc. No entanto, seu trabalho não é ensinado, por exemplo, no Laban Centre, London. Isso dá um sabor especial à formação do LIMS e ao CMA (Certified Movement Analyst). Para mim, os BF concedem um arcabouço corporal sólido ao Sistema Laban, facilitando a realização das Escalas de Laban, a experiência das variadas expressividades, possibilitando a relação harmônica entre Corpo e Espaço proposta por Laban. Bartenieff desenhou exercícios flexíveis, baseados em Princípios de Movimento ao invés da imitação de um modelo ideal, ou melhor, apropriados ao Sistema Laban, concedendo-lhe maior clareza e fisicalidade. Como é que você realiza uma diagonal do Cubo? Existem infinitas maneiras. Mas se você aplica os BF, todas as maneiras serão orgânicas, envolvendo todo o corpo de forma harmônica. Poderíamos dizer, grosso modo, que Bartenieff desenvolveu dentro do corpo o que Laban desenhou fora, no espaço, apesar de que as qualidades expressivas estão em ambos espaços (dentro e fora do corpo). Parece-me que a idéia de Laban de conectar a arquitetura interna com a externa toma corpo – literal e metaforicamente – através do trabalho de Bartenieff. Ela desenvolve os princípios de harmonia e correspondências das partes com o todo (“harmonia”) de Laban, dentro do corpo, em sua fisiologia de movimento, integrando o corpo ao ambiente (por isso o livro da Bartenieff se chama “COPING WITH THE ENVIRONMENT”!!). Seu objetivo é o relacionamento harmonioso do corpo com/no mundo, otimizando as possibilidades anatômicas e funcionais do corpo para uma expressão pessoal e comunicativa, quer seja na produção de obras de arte ou nas atividades do dia-a-dia. Assim, Marcas Ósseas, Correntes de Movimento, Suporte Respiratório, etc., dão suporte para o Domínio do Movimento – expansão dos padrões ou preferências cotidianas de cada um – nas categorias Corpo-Expressividade-Forma-Espaço.
RC – Qual é, para você, a importância do método (Bartenieff) e mesmo da educação somática na formação do bailarino contemporâneo?
CF – O método libera o bailarino da imitação de exercícios, de tentar sempre se mover de uma forma esteticamente desejada, baseada em modelos externos de beleza. Através dos métodos de educação somática em geral, e dos BF em particular, o bailarino – então contemporâneo – conecta-se com sua própria forma de mover, em uma organização corporal regida por princípios abertos, ao invés de estereótipos de movimento. Descobre-se então que técnica não é imitação, mas sim direcionamento criativo, conectando os impulsos pessoais às demandas do ambiente.
RC – Como, segundo suas pesquisas, o método desenvolvido por Bartenieff relaciona-se à criação e a composição em Dança atualmente? Você acredita que o método pode desencadear um processo criativo? Como?
CF – Através desta conexão com o mundo interno do criador, descobre-se formas inéditas de mover, a maneira de cada um re-inventar esse corpo comum (somos todos da mesma espécie) e único (somos todos diferentes). Os BF nos prepara para uma jornada de pesquisa da memória corporal em uma relação de igualdade com o meio ambiente, ao invés da imposição de um sobre o outro, ou de prevalecer o mundo interno ou externo. Os BF devolvem o poder ao corpo (com tudo que ele inclui: a psique, a memória, o inconsciente…), que se relaciona de forma dinâmica e imprevisível com o meio. Os Fundamentos são fundamentais! Na minha experiência de dez anos usando os BF em aulas e processos criativos, posso te afirmar que eles conectam a consciência com o corpo, transformando qualquer processo autômato em criação.
RC – Em quais outros locais do Brasil os Fundamentos de Bartenieff são pesquisados? Com quais finalidades?
CF – Vou citar os exemplos que conheço, mas podem haver bem mais locais trabalhando com isso, e que eu não tive a oportunidade de conhecer ainda. Em São Paulo, tem a Marta Soares (CMA), que ensina no programa Estudos do Corpo, coordenado pela Christine Greiner. A Ana Terra desenvolve, no Curso de Dança da Faculdade Anhembi-Morumbi, uma Proposta Pedagógica de Educação Somática, que provavelmente inclui os BF. No Rio de Janeiro, workshops variados são sempre oferecidos no Centro Laban, com a Regina Mirando ou com outros professores convidados. E também a Faculdade Angel Vianna inclui CMAs no seu corpo docente. No Rio Grande do Sul, a Cibele Sastre (CMA) ensina no curso de Licenciatura em Dança da Universidade de Cruz Alta, e no curso de Pedagogia em Arte com qualificação em Dança do convênio FUNDARTE/UERGS em Montenegro. No mesmo estado, Flávia do Valle (CMA) ensina numa Faculdade do interior. Em Curitiba, a Marila Andreazza, que fez vários workshops em educação somática, ensina na Faculdade de Artes do Paraná, onde coordena a especialização em Consciência Corporal. No nordeste, tenho semeado várias sementes, através dos meus alunos, que agora repassam o Sistema Laban/Bartenieff para seus alunos ou bailarinos/atores. Dentre eles, posso citar Everaldo Vasconcelos (UFPB), João Lima (Univ. do Estado da Bahia – UESB), Demian Reis (artista independente) e Gabriela Pérez (Escola Superior de Teatro da Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires). Dos alunos que fizeram aulas comigo e/ou com outros profissionais e que desenvolvem projetos sobre BF no momento, estão: Júlio Mota (LMA e Teatro Físico), Emanoel Nogueira (LMA com presidiárias) e Ricardo Fagundes (LMA, Stanislavski e Mímica Corporal Dramática).
RC – Há algum outro aspecto do método e de suas vivências com ele que você gostaria de destacar?
CF – Que, curiosamente, outras pessoas desenvolveram exercícios bem semelhantes ao de Bartenieff em outros lugares, a partir do Sistema Laban, sem nunca terem feito aula de BF. Isso eu pude observar ao ver os movimentos do meu ex-aluno Demian Reis, que havia estudado com Joana Lopes em Campinas. Demian tinha a mesma fluidez respiratória e conexões corporais de quem já faz BF há algum tempo, e quando lhe perguntei a respeito, ele se referiu ao trabalho da Joana. Você também pode observar muitos dos BF, realizados com todos os detalhes sugeridos no LIMS, nas danças de Cláudio Lacerda (RJ), que estudou no Laban Centre de Londres por dois anos. Ele não fez aula específica de BF no Laban Centre, mas seus Estudos em Laban (Laban Studies, como o Sistema é denominado em Londres) lhe permitiram desenvolver esses Princípios de Movimento. Ao vê-lo dançar, você pode pontuar os BF e seus Princípios um a um! Por outro lado, pode-se dizer que se vê os BF em quase todos os movimentos corporais, pois se baseiam em padrões básicos de movimento, para a Transferência do Peso Corporal para a Locomoção. Então eu poderia, por exemplo, dizer que, ao se sentar, uma pessoa no ônibus realiza um Deslize Lateral da Pélvis seguido de um Deslize Posterior da Pélvis (ao invés de Frontal, ou Propulsão Frontal). Isso seria a parte mecânica do movimento. Mas estaria de fato esta pessoa realizando os BF? Bem, se ela não está respirando fundo até a pélvis (Suporte Respiratório) e deixando o movimento partir do cóccix engajando o ILIOPSOAS (Correntes de Movimento), entre outros detalhes, então ela não está realizando os BF, mesmo que aparentemente esteja. Isto é o problema de imitar os Fundamentos como se fossem uma técnica como qualquer outra. Regina Miranda, pioneira dos BF no Brasil, me disse uma vez que os BF não são técnica. Eu completaria dizendo que só se a gente entender técnica de outra maneira que não a formal, imitativa. Por isso, cuidado com workshops que “ensinam” os BF como uma série de exercícios prontos, tipo “fast food” ou enlatados prontos para serem consumidos. Não funciona assim. Os BF não se encaixam nesse modelo de ensino. Sobre isso também a Regina e eu conversamos e concordamos certa vez.
Leituras Recomendadas:
ALLISON, N, (Ed.) The Illustrated Encyclopedia of Body-Mind Disciplines. New York: The Rosen Publishing Group, 1999.
BARTENIEFF, I. Body Movement – Coping with the Environment. Langhorne: Gordon & Breach, 1980.
FERNANDES, C. O Corpo em Movimento: O Sistema Laban/Bartenieff na Formação e Pesquisa em Artes Cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.
WOODRUFF, D. “Treinamento na Dança: Visões Mecanicistas e Holísticas”, in Cadernos do GIPE-CIT nº2: Estudos do Corpo. Trad. Leda Muhana Iannitelli, da revista CAHPER Journal (July/August), 1989.
[1] Parte do Projeto de Iniciação Científica “O método Bartenieff Fundamentals aplicado ao desenvolvimento do processo criativo em Dança Contemporânea”, coordenado pela Profa. Dra. Marisa Lambert. A pesquisa possui metodologia teórico-prática. Inclui, como objetivo final a realização de um estudo coreográfico á partir dos conceitos teóricos dos Bartenieff Fundamentals levantados durante a pesquisa.
[2] Universidade de Campinas / UNICAMP.