O Corpo Presente: Uma experiência sobre Dança – Educação


O CORPO PRESENTE: UMA EXPERIÊNCIA SOBRE DANÇA-EDUCAÇÃO

Jussara Miller1

(Fonte: https://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/etd/article/view/6172/5158)

www.fae.unicamp.br/etd ARTIGO © ETD – Educ. temat. digit. Campinas, SP v.16 n.1 p.100-114 jan./abr.2014 ISSN 1676-2592

RESUMO: A atenção ao próprio corpo instaura a percepção do tempo presente, o aqui e agora. A experiência do corpo presente é o objetivo primeiro das proposições de sala de aula aqui compartilhadas, portanto a Dança-Educação acontece em consequência dessa premissa. As propostas pedagógicas são desenvolvidas com a estratégia da improvisação em caráter de investigação, ou seja, não se entra no âmbito da obediência do corpo dócil, do corpo submisso exercitado, adestrado e fabricado pela disciplina, mas sim do corpo presente, na escuta de si, que traça um caminho de dentro para fora, em sintonia com o de fora para dentro e com o de dentro para dentro, criando, assim, uma ampla rede de percepções. O corpo presente emerge da escuta do corpo e das relações que se estabelecem na prática do aluno em experiência, que reconhece a unidade corpomente, o soma, com a sua abrangência de sensibilidades para desconstruir o corpo sentado e estagnado em suas convicções e estabilizações.

PALAVRAS-CHAVE: Dança-Educação. Técnica Klauss Vianna. Corpo e educação.

/THE BODY PRESENT: AN EXPERIENCE IN DANCE-EDUCATION ABSTRACT: The attention to one’s own body brings perception of the present time and the now. The experience of body present is the main objective of the proposals in the classroom shared here; therefore the Dance-Education takes place as a consequence of this assumption. The pedagogical proposals are developed with improvisation strategies as a means of investigation. In other words, it is not expected to get in the scope of the allegiance of the manageable body, the submissive body exercised, trained and built by discipline. As a matter of fact, the body present by self-listening, drafts a way from inside to outside, tuned with the outward to the inward and also with the inward to the within which generates a broad network of perceptions. The body present emerges from this listening to of the body and the relationships that become established the practitioner. The student recognizes the unit bodymind, the soma with its amplitude of sensibilities in order to deconstruct the body seated and stagnated in its convictions and stabilized habits.

KEYWORDS: Dance-Education. Klauss Vianna technique. Body and education. EL CUERPO PRESENTE: UNA EXPERIENCIA SOBRE DANZA-EDUCACIÓN RESUMEN: La atención al propio cuerpo establece la percepción del presente, el aquí y ahora. La experiencia del cuerpo presente es el objetivo de las propuestas hechas en clase y que aprovecho para 1 Bacharel e Licenciada em Dança pela UNICAMP. Mestre e Doutora em Artes pela UNICAMP. Docente da Pós-graduação na Técnica Klauss Vianna – COGEAE/PUC-SP, em São Paulo. Campinas (SP) – Brasil. Email: jussara@salaodomovimento.art.br Recebido em: 29/10/2013 – Aceito em: 16/11/2013 www.fae.unicamp.br/etd ARTIGO © ETD – Educ. temat. digit. Campinas, SP v.16 n.1 p.100-114 jan./abr.2014 ISSN 1676-2592 compartir. La Danza-Educación sucede como consecuencia de esta premisa. Las propuestas pedagógicas se desarrollan de acuerdo a la estrategia de la improvisación, teniendo en cuenta el carácter de la investigación, es decir, no está centrada bajo la obediencia del cuerpo o el cuerpo dócil y sumiso aún que ejercido, entrenado y fabricado por la disciplina, pero el cuerpo presente, a través de la escucha de si mismo. Descubreindo un camino de adentro hacia afuera, en sintonía con el exterior y en el interior-interior, creando así una gran red de percepciones. El cuerpo presente surge de la escucha al cuerpo y se realiza a través de las relaciones establecidas en la experiencia de los estudiantes, que reconocem la unidad cuerpo-mente, el soma, con su gama de sensibilidades de deconstruir el cuerpo sentado y estancado en sus convicciones y estabilizaciones.

PALABRAS-CLAVE: Danza-Educación. Técnica Klauss Vianna. Cuerpo y educación. 1

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INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre a Dança-Educação, tendo como território de pesquisa a sala de aula de dança para adultos e crianças no Salão do Movimento, um espaço de dança e educação somática em Campinas (SP), além da Pós-graduação lato sensu na Técnica Klauss Vianna na PUC-SP, em São Paulo, voltada para estudantes, pesquisadores e profissionais das artes do corpo. Apresento aqui reflexões sobre as contribuições da educação somática para o ensino da dança, contextualizando as questões do corpo que dança a partir do referencial somático. O desenvolvimento da presente discussão se pauta na Técnica Klauss Vianna, com um olhar tanto como professora quanto como artista da dança, pois as linhas que se cruzam no meu trabalho, a educacional e a artística, alimentamse mutuamente nas experiências em sala de aula e no palco. A Dança-Educação abordada no presente texto não enfoca a importância da dança no processo ensino-aprendizagem, ou a importância da dança na escola, ou mesmo o uso da dança como prática pedagógica que favorece a criatividade e o processo de construção de conhecimento. Aqui, a reflexão é sobre o ensino da dança em si, pautado na experiência do sujeito, o eu-corporal, o soma, com toda a sua gama de complexidades. Mais do que discutir a importância da dança em variados contextos da educação, vejo a necessidade de discutir como a dança vem sendo ensinada e difundida por décadas a fio por praticantes, profissionais, professores e artistas da dança. Podemos observar, ainda nos dias de hoje, o ensino da dança vinculado apenas à prática exaustiva e repetitiva de conquistar movimentos e passos cada vez mais virtuosos e formalizados. Dessa forma, o que deve ser observado e refletido aqui não é a Dança-Educação e a gama de benefícios almejados (pelo professor), mas primordialmente o pensamento de corpo abordado e trabalhado nas aulas de dança. Este texto tem como objetivo refletir sobre a importância do ensino da dança com enfoque somático para a formação de cidadãos críticos, participativos e autônomos. A presente proposição de dança como experiência pode possibilitar ao alunado − adultos e crianças − novas formas de expressão e comunicação, levando-os à descoberta e reconhecimento de si.

A educação somática consiste em práticas corporais nas quais o praticante tem uma relação ativa e consciente de si com o processo de percepção e investigação do movimento e do corpo próprio, o que proporciona uma autonomia e autorregulação da unidade corpomente, o soma, em seus aspectos físico, psíquico e emocional. O enfoque somático da Técnica Klauss Vianna disponibiliza o corpo para lidar com o instante do momento presente. É um estado de atenção que vai sendo trabalhado em sala de aula por meio de estratégias específicas de improvisação para se escutar o corpo presente e em transformação. Essa escuta do corpo em transformação se dá pelo despertar dos cinco sentidos, pelos quais nos relacionamos com o mundo e desenvolvemos o sentido cinestésico, que compreende a percepção do corpo no tempo e no espaço, com a sua abrangência de sensibilidades. Desde a década de 1950, os pesquisadores brasileiros Angel e Klauss Vianna dedicaram-se a um trabalho de observação e pesquisa das estruturas do corpo e do movimento humano, posteriormente sistematizado pelo filho Rainer Vianna com a colaboração da nora Neide Neves, o que resultou na Técnica Klauss Vianna, reconhecida como uma técnica de dança e educação somática. No Brasil, o casal Vianna teve um papel pioneiro na pesquisa do movimento com enfoque somático. Meu trabalho, portanto, busca dar espaço para a manifestação do corpo como um todo, com os conteúdos da vida psíquica, das expressões dos sentidos, da vida afetiva. Não é possível negligenciar ou esquecer tais coisas nem fazer com que o corpo permaneça mudo e não transmita nada: as informações que ele dá são incontroláveis. Temos é que reconhecer esses processos internos poderosos e dar espaço para que eles se manifestem, criando assim a coreografia, a dança de cada um. (VIANNA, 2005, p. 150). O enfoque dado aqui é na inovação pedagógica que a pesquisa da família Vianna provocou no pensamento sobre o corpo nas artes cênicas em geral,  considerando também a abordagem diferenciada de acolher na mesma sala de dança os praticantes que não têm enfoque cênico, mas simplesmente buscam um bem-estar e uma disponibilidade corporal para as atividades da vida diária. Entre as diversas inovações propostas por eles, podemos citar: a postura do professor como orientador e facilitador de um processo, e não como modelo a ser copiado; o trabalho centrado no indivíduo, na escuta de si, com suas percepções, relações e seu autoconhecimento; a postura investigativa em sala de aula e na vida cotidiana provocando, assim, um estado de presença a partir do trânsito de atenção do interno e do entorno, para desconstruir o corpo sentado e estagnado com suas convicções e estabilizações. Esse pensamento de corpo foi nomeado como Escola Vianna e contempla não exclusivamente as atividades artístico-pedagógicas da família Vianna, mas também os desdobramentos da pesquisa a partir das ações de outros pesquisadores que, posteriormente, trabalharam em seus contextos de atuação, abarcando assim as especificidades de cada área e a singularidade de cada pesquisador. Para nomear e reconhecer o pensamento da Escola Vianna pautei-me na teoria da formatividade do filósofo italiano Luigi Pareyson: A escola é como uma família, onde a novidade e a irrepetibilidade do indivíduo não estão comprometidas, mas fundadas pela comum geração e pela linha descendente da reprodução, onde a singularidade não nega a comunidade, mas nutre-se dela, e a semelhança não suprime, mas realiza, a originalidade. (PAREYSON apud MILLER, 2012, p. 19). A compreensão do corpomente, o soma, que conduz as ações pedagógicas dos professores pesquisadores da Escola Vianna, considera as transformações do interno e do entorno do sujeito numa rede de contaminação; portanto, na sala de aula, o par professor-aluno não escapa do processo de escuta de si, ao traçarem um caminho de percepção de dentro para fora, em sintonia com o de fora para dentro e com o de dentro para dentro, criando, assim, uma ampla rede de percepções. Dessa forma, o corpo presente emerge da escuta e das relações que se estabelecem na prática dialógica entre professor-aluno-alunos em experiência.

2 A EDUCAÇÃO DO CORPO-EDUCAÇÃO

Quando se experiência a dança em sala de aula, podemos afirmar que estamos  por excelência numa vivência prática; porém, não queremos entrar aqui no processo dicotômico entre prática e teoria, separação tão comum no contexto acadêmico e muitas vezes afirmada e assinada pelos próprios educadores do sistema educacional. A integridade corpomente no pensamento de corpo na Dança-Educação resulta no desprendimento das dicotomias tão arraigadas em nosso ser como consequência dos processos de educação formal e até mesmo da educação informal em cursos livres de dança e de artes em geral. Muitas vezes, nós, professores, levamos para a sala de aula ações dualistas como uma herança gravada no corpo. Essas ações escapam quase como um ato reflexo de um sujeito que trabalha com as ferramentas que lhe foram transmitidas ao longo de suas vivências, e consequentemente acabam emergindo desse arquivo pessoal inscrito na pele. As dicotomias que costumam ancorar o repertório do professor de dança e, portanto, a sua aula são: corpo-mente, teoria-prática, pensar-fazer, certo-errado, belofeio, técnica-criação, as quais resultam em tantas outras oposições binárias que podem culminar na dicotomia hierarquizada entre o professor que sabe e o aluno que não sabe. A tônica deste texto é a reflexão sobre Dança-Educação com o olhar direcionado principalmente para as ações dos educadores em sala de aula e suas reverberações. Esses educadores dizem com o corpo inteiro e educam com as suas presenças. Esse olhar pode ser ampliado para professores de outras áreas de conhecimento, pois, mesmo que o enfoque da disciplina não seja pautado no trabalho corporal, o docente está presente da mesma forma em sala de aula, num processo de comunicação do corpo. Trata-se, assim, sob algum aspecto, de educação do corpo e de corpo-educação. O educador lida a cada momento com conceitos e por vezes preconceitos de corpo em sala de aula. O ato de não considerar o corpo em aula não deixa de ser uma ação pedagógica de não olhar e não escutar o corpo em sua presença e integralidade. Assim, estamos a todo tempo no processo de educação do corpo e do corpo-educação, mesmo que o foco não seja a Dança-Educação ou áreas afins. Na sala de aula da Técnica Klauss Vianna, trabalhamos o corpo presente como um procedimento didático; focamos o corpo em relação com seus variados níveis de  atenção: atenção a si, ao espaço e ao outro. Essa presença deve partir do professor em comunicação com a presença do aluno, que por sua vez provoca o estado de presença do professor e de outros alunos numa rede de contaminação. A relação dialógica entre professor-aluno e aluno-aluno nasce das presenças e das singularidades que emergem no trabalho em sala de aula. Ao longo desse processo, é fundamental considerar a relação mundo-eu, verdadeira origem e motor do movimento e da própria dança, pois é da dinâmica desse relacionamento que emerge a singularidade que faz de cada pessoa um ser único e diferenciado. Por meio da vivencia da relação mundo-eu, o eu interno desabrocha a partir do amadurecimento do eu social, que nada mais é do que a forma de nos relacionarmos com o mundo exterior. A descoberta do eu interno, de um ser único, individual e criativo, é indispensável ao exercício da dança, se quisermos que ela se torne uma forma de expressão da comunidade humana. (VIANNA, 2005, p. 111). A comunicação do corpo presente propicia a experiência no sentido amplo de vivência e fruição da dança como forma de expressão da comunidade humana. O meu corpo sou eu, não é o meu instrumento de trabalho, de aprendizagem, de comunicação e de expressão. O professor de dança, portanto, não é o corpo educador que sabe o certo e deposita informações corretas no corpo recipiente do aluno que não sabe, estabelecendo assim a coisificação do soma, o corpo objeto, o corpo instrumento, o corpo máquina. Ou seja: a complexidade de nossa vida, a qual resulta de um entretecer de fatores físicos, metabólicos, sensíveis, emocionais, ambientais, sociais e culturais simplesmente é descartada, e o que resta é um corpo que possui bem pouco de humano, no sentido maior do termo. Decorrendo daí que um corpo tomado como máquina deve apenas ser “consertado” por meio de intervenções exteriores, não havendo espaço para a sua educação ou reeducação. (DUARTE JÚNIOR, 2006, p. 61). O eu-corporal, o soma, o corpo tratado na primeira pessoa é fator diferencial para se trabalhar a dança. O corpo-fora, ele, tratado na terceira pessoa é muitas vezes afirmado não só no contexto da Saúde, onde o médico é quem sabe e cuida do corpo paciente, mas também no contexto educacional, onde o professor é quem sabe e transmite o que sabe ao aluno, corpo recipiente e não tão paciente. O conceito do corpo-ele, corpo-fora, pode vir implícito na própria desconsideração do corpo-eu, o sujeito, nas disciplinas corporais e nas ditas não corporais, ou seja, que não tenham um enfoque de trabalho prático. Assim os alunos em sala de aula devem permanecer sentados, enfileirados, organizados, dóceis e  disciplinados. O corpo sentado da escola enquadra e estabiliza o corpo sentido, os sentidos do soma. Por vezes, podemos testemunhar o corpo sentado em sua passividade até mesmo nas disciplinas de educação física e artes corporais.

3 A DANÇA COMO EXPERIÊNCIA A experiência da dança em sala de aula provoca o sujeito na sua totalidade em cada vivência. As reverberações das experiências acontecem não como acúmulo de informações, mas como vivências inscritas na pele com toda a gama de intensidades. O conceito de experiência adotado aqui parte do pensamento do educador espanhol Jorge Larrossa, que pensa a educação a partir do par experiência/sentido: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”. (LAROSSA, 2002, p. 21). Todo professor se revela como aprendiz da experiência grupal com os estudantes-pesquisadores. O estudante que é provocado à investigação já é considerado um pesquisador de si mesmo e, portanto, em experiência. Partindo da premissa de que na sala de aula o professor-sujeito está em experiência compartilhada com o aluno-sujeito, deslocamo-nos do território generalizado e hierarquizado do corpo docente que ensina, passando informações para o corpo discente e termina alijando, dessa forma, o par experiência/informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. (LAROSSA, 2002, p. 21). Nas oportunidades que tenho para falar e escrever sobre o meu trabalho como educadora e artista da dança, em palestras, conferências, livros, artigos e diálogos com alunos, deparo-me constantemente com a autocobrança da coerência no percurso e discurso da minha pesquisa em arte. A questão que me norteia é a seguinte: eu faço o que falo e falo o que faço? Este leme de pensamento faz eu me debruçar cada vez mais na experiência da pesquisa em processo, no sentido de investigação no e do próprio ato pedagógico e de sua processualidade.

 Sabemos que vivemos numa “sociedade de informação” – informações pagas e cada vez mais inflacionadas e associadas à mercadoria e a juízos de valor: pagou-se bem, informou-se e formou-se bem. A experiência da arte apresenta-se cada vez mais elitizada, e os acessos à Dança-Educação estão diretamente vinculados, na maioria das vezes, a cursos privados da educação formal e informal. O aprendizado fica vinculado a adquirir, acumular e processar informação, para que, em seguida, o sujeito bem informado e (de)formado possa obrigatoriamente formular uma opinião supostamente própria. O par informação/opinião converteu-se em um imperativo no sistema educacional atual, no qual os alunos são estimulados constantemente e apressadamente a dar opinião sobre aquilo de que se sentem informados, mas pouco estimulados a perceber o que sentem. O tempo acelerado, e consequentemente cada vez mais escasso, incita a constante atualização e a reciclagem sem-fim de informação, opondo-se, dessa forma, ao tempo da experiência. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, […] sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, dar-se tempo e espaço. (LAROSSA, 2002, p. 24). O sujeito da experiência é afetado a partir de sua receptividade, disponibilidade e abertura ao momento presente. Ele está “ex-posto”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. A dança como experiência considera a sala de aula como um laboratório de investigação, em que a imprevisibilidade provoca e instaura o estado de presença e escuta o corpo presente em experiência. “É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação.” (LAROSSA, 2002, p. 26). A experiência em sala de aula nos lança no tempo compartilhado de um grupo de pessoas e na vivência de um acontecimento em comum, porém a experiência é singular. O saber da experiência é um saber que não se desvincula do indivíduo. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas está encarnado em nós,  imantado por nossas sensibilidades e singularidades. As atividades vividas pelos grupos de pessoas em sala de aula não se constituem de acontecimentos uniformes a todos, pois o ambiente e nós todos somos diferentes a cada momento. O corpo presente clama a nós mesmos para sermos escutados de novo a cada momento novo, porque, por mais que o conteúdo pedagógico ancore um caminho didático, nós, o mundo e os outros – aqui e agora − já não somos os mesmos, pois as transformações nos atingem e os instantes nos afetam.

4 O SER ADULTO, O SER CRIANÇA, O SER SENSÍVEL A experiência como professora de dança e educação somática para adultos e crianças me abriu para reflexões no âmbito educacional. O trabalho diário em sala de aula me fez reconhecer em minhas ações pedagógicas uma característica de abertura de diálogo tanto com o público adulto quanto com o infantil, estimulando e provocando ambos os universos para um reconhecimento das singularidades de suas danças e de seus caminhos de movimento. O grupo infantil me provocava ações para o grupo adulto e vice-versa; portanto o meu estado de investigação como professora ficava permeável às distintas faixas etárias, rompendo os limites de tabelas de idades que às vezes aparecem como parâmetro de ações no contexto educacional formal. Ao fomentar o corpo presente do aluno, eu fui entrando em contato com situações bastante semelhantes entre a aula do adulto e a da criança, no que diz respeito aos tópicos corporais a serem investigados em sala e às músicas escolhidas. As escolhas de estratégias metodológicas não ficaram compartimentadas em procedimentos estagnados para cada faixa etária. Pouco a pouco, fui percebendo que a minha didática era originária de minhas sensibilidades singulares como indivíduo, professora e artista da dança em processo, portanto, em transformação. O processo de preparação de aula foi se confundindo com um processo criativo, atento, investigativo e não conclusivo. As necessidades focadas em aula eram não só as necessidades dos alunos, mas as minhas próprias investigações sobre vivências passadas e experiências presentes, o corpo presente do professor. Acredito que todo profissional em ação metodológica opera sua alquimia criativa no processo de dar aulas, mas o território de ensino e criação deve ser  suficientemente clarificado para que o aluno possa contextualizar sua própria pesquisa de movimento que, naturalmente, passa de uma geração a outra com todos os processos de contaminação e atualização. O estudo das fontes de trabalho e de toda a rede que acaba se formando fortalece o próprio trabalho como um reconhecimento de pertencimento. Eu reconheço que fui me transformando em professora a partir de minhas inquietações como artista da dança e fui descobrindo durante os anos uma maneira de investigar, com os alunos, as experiências em sala de aula e nelas acreditar. Os créditos do trabalho foram surgindo como consequência de uma pesquisa continuada. Arrisco afirmar que a minha pesquisa metodológica tenha sido iniciada com a pesquisa somática, pois já estava abrindo a dança a outros olhares, direcionando o aluno (não exclusivamente bailarino) a experienciar o corpo e o movimento expressivo. Assim, reconheço que as ações de um educador de dança não se limitam a ensinar danças, mas devem, principalmente, provocar experiências, sensibilidades e reflexões. A dança como experiência e como processo, aqui abordada, foca a prontidão de estar em pesquisa e não o estar em treinamento para algo que virá depois, desvinculado do que se frui. A proposta é trabalhar diariamente a escuta de si. Podemos presenciar uma contradição no território da Dança-Educação: há uma abertura de visão do ensino das artes, mas os próprios professores de dança não se desapegam de diversos procedimentos que, no discurso da dança, não cabem mais ou devem ser revistos. O balé clássico, por exemplo, apresenta-se muitas vezes como a base técnica única validada pela dança em geral, para depois, num segundo momento, o professor poder temperar essa base técnica com o que convier às suas próprias ações pedagógicas em sala de aula. Portanto, para novas ações pedagógicas, precisamos nos despir de velhas convicções impostas no decorrer dos séculos. No processo de construção do corpo presente, procuro utilizar-me de diversos focos, como: estado de prontidão para o movimento, observação do corpo em movimento, autonomia do aluno para a criação, conexão e relação com os ambientes internos e externos, entre outros. O processo técnico é enfatizado não como repetição mecânica, mas como repetição sensível, como desenvolvimento de percepções,  vivências e aptidões. O estar presente. Não buscamos antecipar reações, mas agir de acordo com os estímulos, sabendo que tudo é novo a cada momento e que o movimento se faz movendo. É um estado em que nos colocamos abertos para produzir soluções de movimento imediatamente decorrentes do que percebemos acontecer em nosso corpo e à nossa volta. (NEVES, 2008, p. 90-91). É, portanto, um processo qualitativo e não apenas um treinamento quantitativo para o acúmulo de habilidades em cadência linear a partir da repetição mecânica. É a busca do corpo sensível que não se encontra a partir da imagem refletida no espelho da sala de aula de dança, mas a partir da experiência do corpo próprio vivenciado com suas limitações, desejos e com todo o histórico do indivíduo em ação investigativa a partir de sua interioridade e singularidade. Assim, o corpo presente pode ser preparado diariamente em sala de aula, a partir do processo de acessar a dança de cada um com suas memórias, sentidos e experiências para reabitar o corpo que dança. A abordagem da Técnica Klauss Vianna para acessar o corpo presente é anatômico-estrutural, assim a escuta do corpo, ao mesmo tempo em que é uma mola propulsora para a experiência, serve de âncora também para a investigação do corpo em movimento. O mapa didático utilizado em sala de aula pode ser o mesmo, mas a viagem é sempre única. É a escuta de si, do instante, na experiência. Se sentir, se observar em relação ao espaço e ao outro. Não trabalhamos com a repetição mecânica de passos de dança, mas com a repetição sensível de tópicos corporais que servem como âncora de pesquisa que podem resultar em diferentes caminhos de movimento, giros, saltos, deslocamentos, pausas e inúmeras composições que o soma pode nos possibilitar. Como disse o mestre: “Não decore passos, aprenda um caminho”. (VIANNA, 2005). A dança e educação somática Klauss Vianna propõe uma vivência do soma em estado exploratório e não uma vivência do corpo mecânico que somente adquire e acumula habilidades. O que trabalhamos, mais do que o corpo hábil, é o corpo lábil, no sentido de transitório, instável e sempre em transformação, que permite ao aluno deixar viva e ativa a postura da investigação necessária em sala de aula. Quando você vive um processo em Educação Somática, você se transforma, transforma sua percepção de si mesmo. Quando você transforma sua organização corporal, é realmente seu olhar sobre o mundo  que se transforma; aquilo que você quer dizer sobre o mundo também se transforma, a maneira como você quer dizer as coisas também se modifica, seu imaginário também é transformado. Nós somos seres vivos, nós somos antes de tudo incorporados: incorporados na nossa fisicalidade, no nosso imaginário, e incorporados na nossa afetividade. (FORTIN, 2004, p. 127). Um trabalho sobre a consciência de si pode provocar inúmeras transformações. É nesse território em transformação que emerge o corpo lábil, ou seja, o corpo próprio em estado exploratório. Falo do corpo próprio como o corpo construído a partir da conscientização e percepção do movimento, o corpo construído pelos sentidos, o corpo sentido em movimento, o corpo dançante num “laboratório da percepção”. (SUQUET, 2008). O aluno experiencia nas aulas o estar no mundo, o corpo presente, o corpo do indivíduo, o cidadão da dança da vida. O reconhecimento do próprio corpo confere ao aluno uma disponibilidade para sentir e lidar com o instante do momento presente e toda a gama de imprevisibilidade. O refinamento do corpo sensível é resultado de uma cinestesia em trabalho diário que vai se desenvolvendo de forma que o aluno possa acessar o corpo que dança a partir da sua percepção, que é a atitude primeira de sala de aula e fora dela. Portanto, o movimento se estabelece a partir da percepção de seu caminho, guiado pelo sentido do movimento e não pela forma ideal exteriorizada. Esse processo não deixa de ser um trabalho técnico do corpo que dança. O corpo dançante trabalhado nas aulas pressupõe como foco de pesquisa a anatomia sensível; isto é, a estrutura óssea é reconhecida não no sentido de acumular informações e conhecimentos anatômicos aleatórios, mas sim para clarificar ações adequadas às necessidades corporais. Busca-se o corpo sentido, portanto, a anatomia serve como um recurso para concretizar estratégias de atuação investigativa do corpo. O sistema ósseo-esquelético é o eixo de investigação do corpo sentido e amplia a pesquisa para a reverberação nas cadeias musculares, ou seja, cadeias musculares específicas são acionadas a partir de vetores e direcionamentos ósseos específicos. Portanto, a anatomia sensível guia o corpo dançante. Vetores que amplificam o movimento e provocam um estado de dança. Na Técnica Klauss Vianna, a improvisação é um recurso primordial para acessar o corpo presente, em prontidão, na escuta do momento que se transforma instantaneamente. Durante as aulas, o estudo do movimento se apoia na estratégia de  improvisar e perceber o que acontece enquanto se faz. A percepção do movimento e de sua articulação com o outro e com o espaço ancora e integra a prática diária de construção de um corpo presente que dança, seja este adulto ou criança – ambos seres sensíveis. A dança que fazemos hoje, como adultos, não deixa de ser uma herança de todo nosso percurso em dança, numa formação continuada ou mesmo parcial, em cursos temporários durante a infância ou adolescência. Portanto, o pensamento de corpo e movimento já está instaurado em nossas ações e no nosso modo de se fazer a dança desde essas primeiras formações. Ou seja, a construção de um pensamento de dança é iniciada lá atrás, com o que mais reconhecemos de expressivo em toda a nossa bagagem do corpo em movimento. A pesquisa do movimento na Técnica Klauss Vianna dá-se a partir do uso da improvisação com procedimentos lúdicos, o que torna evidente a fertilidade desse trabalho num contexto infantil. A proposta é trabalhar os princípios da dança preservando a espontaneidade de movimento da criança (e do adulto), não oferecendo sequências coreográficas prontas, mas estimulando o aluno a incorporar a dinâmica de investigação do movimento no ato de dançar. As aulas estimulam o sentido de cooperação e integração com o outro, com o meio e consigo mesmo a partir de jogos corporais de dança, trabalhando em sinergia os aspectos motores, cognitivos, afetivos e sociais, ou seja, o soma na sua integralidade. O respeito à individualidade, ao outro, bem como ao seu próprio corpo e aos seus limites anatômicos é uma premissa desse trabalho. Como consequência desse respeito, podemos trabalhar com um grupo heterogêneo de pessoas. A liberdade de escolha inerente ao processo investigativo do movimento promove um desenvolvimento da consciência grupal. As relações com o outro e com as regras das propostas desenvolvidas em sala de aula produzem um constante jogo de variações a partir das ações habituais do trabalho corporal, o que possibilita ao aluno criar novas estratégias do corpo em relação. A pesquisa com crianças se iniciou com as minhas filhas em oportunidades de fruição da dança, a partir do gosto delas por dançar, conjuntamente com a minha necessidade de proporcionar a elas uma dança que não fosse formalizada, por causa  do risco de interferir na livre expressão de movimento delas. Fui trabalhando os temas corporais da Técnica Klauss Vianna com elas e suas colegas, o que foi se caracterizando num grupo regular de dança. Percebi que o estado de curiosidade e investigação que meus alunos adultos buscavam já estava instalado nas crianças naturalmente. O processo lúdico, que é a etapa introdutória da Técnica Klauss Vianna, apresenta procedimentos favoráveis para acessar o corpo da criança, porque envolve a exploração do corpo com todas as possibilidades de movimento, proporcionando o estado do corpo presente a partir do reconhecimento disso. O processo é encaminhado de maneira lúdica, como um jogo de experimentações orientado pelo professor. Os tópicos corporais trabalhados ficam explícitos para as crianças poderem explorar os movimentos e seus variados caminhos. Na sala de aula, a experiência do corpo presente é o objetivo primeiro do grupo, e a dança acontece espontaneamente como consequência desse processo. As propostas são dadas pelo professor em caráter de colaboração, ou seja, não se entra no âmbito da obediência do corpo dócil, do corpo submisso e exercitado, fabricado pela disciplina (FOUCAULT, 1987). A colaboração ocorre por meio de um relacionamento espontâneo entre professor, aluno e grupo em contato com a proposta a ser experienciada. A educação das novas gerações necessita de pessoas com novas visões e experiências, pois o futuro professor de dança se prepara a partir de suas memórias e relações com o seu próprio corpo e com o ambiente na busca do saber sensível. Entendamo-nos: a educação do sensível não prescinde da arte – pelo contrário −, mas deve atuar num nível anterior ao da simbolização estética. Mais do que nunca, é preciso possibilitar ao educando a descoberta de cores, formas, sabores, texturas, odores etc. diversos daqueles que a vida moderna lhe proporciona. Ou, com mais propriedade, é preciso educar o seu olhar, a sua audição, seu tato, paladar e olfato para perceberem de modo acurado a realidade em volta e aquelas outras não acessíveis em seu cotidiano. (DUARTE JÚNIOR, 2006, p. 26). Esse autor se debruça sobre o conceito de estesia, como “faculdade de sentir”, como uma sensibilidade geral que se opõe à “anestesia”, ou seja, a negação do sensível ou a incapacidade de sentir. Hoje, com a vida moderna rumando para o sedentarismo tanto do adulto quanto da criança, podemos presenciar características  anestesiadas de comportamento. “Infelizmente os alunos se anestesiam ao entrar em uma sala de aula. […] Com cinco minutos de aula todo mundo está em transe, ninguém mais se encontra ali. Se um elefante passar pelo meio da sala ninguém nota”. (VIANNA, 2005, p. 25). A partir da escuta do corpo, proponho a estesia do movimento no sentido amplo da experiência. Sentir, degustar cada momento, o corpo sensível, o corpo em experiência, o corpo em estado de presença. Este artigo não finaliza com o intuito de concluir, mas com o desejo de provocar sensibilidades em diálogo com o momento presente, provocar o corpo em transformação, provocar reflexões, provocar experiências como uma abertura para o desconhecido.

REFERÊNCIAS

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